quarta-feira, 29 de junho de 2011

Armínio versus Calvino

O Caminho Cristão traz aqui uma breve exposição entre dois pensamentos acerca da Teologia Sistemática clássica, especialmente no que tange a Soteriologia, ou seja, a Teologia da Salvação e também sobre o Fatalismo e a Prédestinação Absoluta e a Relativa, quais dessas teses estaria certa a ponto de conduzir o homem a Eternidade, ou a um duelo de pontos de vista sem Graça !?..boa leitura !..

O termo Calvinismo é dado ao sistema teológico da Reforma protestante, exposto e defendido por João Calvino (1509-1564). Seu sistema de interpretação bíblica pode ser resumido em cinco pontos, conhecidos como “os 5 pontos do Calvinismo” (TULIP em inglês):

1 – (Depravação total) – Todos os homens nascem totalmente depravados, incapazes de se salvar ou de escolher o bem em questões espirituais;

2 – (Eleição incondicional) – Deus escolheu dentre todos os seres humanos decaídos um grande número de pecadores por graça pura, sem levar em conta qualquer mérito, obra ou fé prevista neles;

3 – (Expiação limitada) – Jesus Cristo morreu na cruz para pagar o preço do resgate somente dos eleitos;

4 – (Graça Irresistível) – A Graça de Deus é irresistível para os eleitos, isto é, o Espírito Santo acaba convencendo e infundindo a fé salvadora neles;

5 – (Perseverança dos Santos) – Todos os eleitos vão perseverar na fé até o fim e chegar ao céu. Nenhum perderá a salvação.

O Arminianismo é o sistema de Teologia formulado por Jacobus Arminius (1560-1609), teólogo da Igreja holandesa, que resolveu refutar o sistema de Calvino.

Armínio apresentou seu sistema em 5 pontos:

1 – Capacidade humana, Livre-arbítrio - Todos os homens embora sejam
pecadores, ainda são livres para aceitar ou recusar a salvação que Deus
oferece;

2 – Eleição condicional - Deus elegeu os homens que ele previu que teriam fé
em Cristo;

3 – Expiação ilimitada – Cristo morreu por todos os homens e não somente
pelos eleitos;

4 – Graça resistível – Os homens podem resistir à Graça de Deus para não
serem salvos;

5 – Decair da Graça – Homens salvos podem perder a salvação caso não
perseverem na fé até o fim.

O sistema teológico de Armínio foi derrotado no Sínodo de Dort em 1619 na Holanda, por ser considerado anti-bíblico.
Por incrível que possa parecer, hoje o Arminianismo é o sistema teológico adotado pela maior parte das igrejas evangélicas. As seitas e o Catolicismo Romano também rejeitam o Calvinismo.

Abaixo, uma tabela comparativa entre os dois sistemas teológicos:

ARMINIANISMO X CALVINISMO

Categoria Arminianismo Calvinismo
1. Livre-Arbítrio ou Capacidade Humana 1. Incapacidade Total
ou Depravação Total
Depravação Total Embora a queda de Adão tenha afetado seriamente a natureza humana, as pessoas não ficaram num estado de total incapacidade espiritual. Todo pecador pode arrepender-se e crer, por livre-arbítrio, cujo uso determinará seu destino eterno. O pecador precisa da ajuda do Espírito, e só é regenerado depois de crer, porque o exercíco da fé é a participação humana no novo nascimento.
(Is 55:7; Mt 25:41-46; Mc 9:47-48; Rm 14:10-12; 2Co 5:10)
O homem natural não pode sequer apreciar as coisas de Deus. Menos ainda salvar-se. Ele é cego, surdo, mudo, impotente, leproso espiritual, morto em seu pecado, insensível à graça comum. Se Deus não tomar a iniciativa, infundindo-lhe a fé salvadora, e fazendo-o ressuscitar espiritualmente, o homem natural continuará morto eternamente. (Sl 51:5; Jr 13:23; Rm 3:10-12; 7:18; 1Co 2:14; Ef 1:3-12; Cl 2:11-13)
2. Eleição Condicional 2. Eleição Incondicional
Eleição Incondicional Deus escolheu as pessoas para a salvação, antes da fundação do mundo, baseado em Sua presciência. Ele previu quem aceitaria livremente a salvação e predestinou os salvos. A salvação ocorre quando o pecador escolhe a Cristo; não é Deus quem escolhe o pecador. O pecador deve exercer sua própria fé, para crer em Cristo e ser salvo. Os que se perdem, perdem-se por livre escolha: não quiseram crer em Cristo, rejeitaram a graça auxiliadora de Deus.
(Dt 30:19; Jo 5:40; 8:24; Ef 1:5-6, 12; 2:10; Tg 1:14; 1Pe 1:2; Ap 3:20; 22:17)
Deus elegeu alguns para a salvação em Cristo, reprovando os demais. Aos eleitos Deus manifesta a Sua misericórdia e aos reprovados a Sua justiça. Deus não tem a obrigação de salvar ninguém, nem homens nem anjos decaídos. Resolveu soberanamente salvar alguns homens (reprovando todos os demais) e torná-los filhos adotivos quando eram filhos das trevas. Teve misericórdia de algumas criaturas, e deixou as demais (inclusive os demônios) entregues às suas próprias paixões pecaminosas. A salvação é efetuada totalmente por Deus. A fé, como a salvação, é dom de Deus ao homem, não do homem a Deus. (Ml 1:2-3; Jo 6:65; 13:18; 15:6; 17:9; At 13:48; Rm 8:29, 30-33; 9:16; 11:5-7; Ef 1:4-5; 2:8-10; 2Ts 2:13; 1Pe 2:8-9; Jd 1:4)
3. Redenção Universal ou Expiação Geral 3. Redenção Particular ou Expiação Limitada
Expiação Limitada O sacrifício de Cristo torna possível a toda e qualquer pessoa salvar-se pela fé, mas não assegura a salvação de ninguém. Só os que crêem nEle, e todos os que crêem, serão salvos.
(Jo 3:16; 12:32; 17:21; 1Jo 2:2; 1Co 15:22; 1Tm 2:3-4; Hb 2:9; 2Pe 3:9; 1Jo 2:2)
Segundo Agostinho, a graça de Deus é “suficiente para todos, eficiente para os eleitos”. Cristo foi sacrificado para redimir Seu povo, não para tentar redimi-lo. Ele abriu a porta da salvação para todos, porém, só os eleitos querem entrar, e efetivamente entram.
(Jo 17:6,9,10; At 20:28; Ef 5:15; Tt 3:5)
4. Pode-se Efetivamente Resistir ao Espírito Santo 4. A Vocação Eficaz do Espírito
ou Graça Irresistível
Graça Irresistível Deus faz tudo o que pode para salvar os pecadores. Estes, porém, sendo livres, podem resistir aos apelos da graça. Se o pecador não reagir positivamente, o Espírito não pode conceder vida. Portanto, a graça de Deus não é infalível nem irresistível. O homem pode frustrar a vontade de Deus para sua salvação.
(Lc 18:23; 19:41-42; Ef 4:30; 1Ts 5:19)
Embora os homens possam resistir à graça de Deus, ela é, todavia, infalível: acaba convencendo o pecador de seu estado depravado, convertendo-o, dando-lhe nova vida, e santificando-o. O Espírito Santo realiza isto sem coação. É como um rapaz apaixonado que ganha o amor de sua eleita e ela acaba casando-se com ele, livremente. Deus age e o crente reage, livremente. Quem se perde tem consciência de que está livremente rejeitando a salvação. Alguns escarnecem de Deus, outros se enfurecem, outros adiam a decisão, outros demonstram total indiferença para as coisas sagradas. Todos, porém, agem livremente.
(Jr 3:3; 5:24; 24:7; Ez 11:19; 20; 36:26-27; 1Co 4:7; 2Co 5:17; Ef 1:19-20; Cl 2:13; Hb 12:2)
5. Decair da Graça 5. Perseverança dos Santos
Perseverança dos Santos Embora o pecador tenha exercido fé, crido em Cristo e nascido de novo para crescer na santificação, ele poderá cair da graça. Só quem perseverar até o fim é que será salvo.
(Lc 21:36; Gl 5:4; Hb 6:6; 10:26-27; 2Pe 2:20-22)
Alguns preferem dizer “perseverança do Salvador”. Nada há no homem que o habilite a perseverar na obediência e fidelidade ao Senhor. O Espírito é quem persevera pacientemente, exercendo misericórdia e disciplina, na condução do crente. Quando ímpio, estava morto em pecado, e ressuscitou: Cristo lhe aplicou Seu sangue remidor, e a graça salvífica de Deus infundiu-lhe fé em para crer em Cristo e obedecer a Deus. Se todo o processo de salvação é obra de Deus, o homem não pode perdê-la! Segundo a Bíblia, é impossível que o crente regenerado venha a perder sua salvação. Poderá até pecar e morrer fisicamente (1Co 5:1-5). Os apóstatas nunca nasceram de novo, jamais se converteram.
(Is 54:10; Jo 6:51; Rm 5:8-10; 8:28-32, 34-39; 11:29; Fp 1:6; 2Ts 3:3; Hb 7:25)
Rejeitado pelo Sínodo de DortEste foi o sistema de pensamento contido na “Remonstrância” (embora originalmente os cinco pontos não estivessem dispostos nessa ordem). Esse sistema foi apresentado pelo arminianos à Igreja na Holanda em 1610, mas foi rejeitado pelo Sínodo de Dort em 1619 sob a justificativa de que era anti-bíblico. Reafirmado pelo Sínodo de DortEste sistema de teologia foi reafirmado pelo Sínodo de Dort em 1619 como sendo a doutrina da salvação contida nas Escrituras Sagradas. Naquela ocasião, o sistema foi formulado em “cinco pontos” (em resposta aos cinco pontos apresentados pelos arminianos) e desde então tem sido conhecido como “os cinco pontos do calvinismo

terça-feira, 28 de junho de 2011

salvo para sempre?!

Uma vez salvo, salvo para sempre?!

Perguntaram a um pregador:
— O irmão é calvinista ou arminianista?
— Depende do público — respondeu. — Se os ouvintes forem teólogos, sou calvinista. Se forem leigos, prefiro ser arminianista...

Calvino
acreditava na predestinação incondicional, teoria pela qual ele defendia cinco pontos principais:

Eleição incondicional. De acordo com Calvino, Deus teria escolhido certos indivíduos para a salvação, antes da fundação do mundo. Tais eleitos, de modo soberano, são conduzidos a uma aceitação voluntária a Cristo. Quanto aos não-eleitos, já estariam condenados ao sofrimento eterno desde o útero!

Expiação restrita
.
A obra expiatória de Cristo teria sido realizada apenas em prol de alguns eleitos, e não por toda a humanidade.

Graça irresistível
.
O calvinismo afirma que o Espírito Santo chama os eleitos internamente, em seus corações, e os leva à salvação. Tal chamado não estaria limitado ao livre-arbítrio; é o Espírito quem, pela graça, conduz o eleito a crer e se arrepender.

Incapacidade total
.
Em decorrência do pecado, o homem teria perdido a capacidade de crer no evangelho. Ele possui a faculdade da volição, o livre-arbítrio, porém a sua vontade não é livre, na prática, haja vista estar presa à sua natureza decaída.

Impossibilidade de perda da salvação
.
Todos os escolhidos por Deus, pelos quais Jesus teria morrido, estariam eternamente salvos, haja o que houver. Eles, por conseguinte, perseverarão até o fim, não por sua própria vontade, mas por obra do Espírito Santo em seus corações.

Armínio afirmava que, apesar do pecado ter afetado seriamente a natureza humana, o homem não foi deixado em um estado de total impotência espiritual. Para ele, a eleição de certos indivíduos baseia-se na presciência de Deus, conhecimento prévio de que os eleitos corresponderão ao seu chamado. Acreditava que a obra de Cristo não assegurou efetivamente a salvação de ninguém.

É claro que Calvino e Armínio tinham razão em alguns pontos que defendiam. Mas, se você está se firmando na teologia desses homens falíveis, receio que esteja em um terreno movediço. Se você tem travado longos debates para defender o pensamento deles, esqueceu-se de que “... toda carne é como erva, e toda a glória do homem, como a flor da erva. Secou-se a erva, e caiu a sua flor; mas a palavra do Senhor permanece para sempre. E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada” (1 Pe 1.24,25).

CARO CALVINO, PERMITA-ME DISCORDAR

Segundo as Santas Escrituras, a escolha para a salvação foi, primeiramente, coletiva — Deus elegeu em Cristo o seu povo (Ef 1.4,5; 1 Pe 2.9). Daí Jesus ter dito: “... edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). Isso significa que o Corpo de Cristo foi escolhido antes da fundação do mundo. Não houve, pois, a eleição de uns indivíduos para a salvação e de outros para a perdição.

Não existe eleição individual? Na verdade, o plano de salvação abrange todos os indivíduos que vão sendo incluídos na Igreja por meio da fé na obra de Cristo, como lemos em Atos 2.47: “... acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (ARA). A Igreja já foi eleita, porém ainda há lugar para mais pessoas nesse Corpo: “... quem quiser tome de graça da água da vida” (Ap 22.17).

Jesus enfatizou que a eleição individual é para quem aceita o seu chamamento geral para a salvação (Mt 11.28-30). Ao afirmar que “... muitos são chamados, mas poucos, escolhidos”, Ele revelou que, das multidões que ouvem o Evangelho, apenas uma parte o segue (Mt 22.14).

De acordo com Efésios 1.5, o Senhor “... nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade”. No entanto, quando os indivíduos se tornam efetivamente filhos de Deus e parte integrante do povo eleito? A resposta está em João 1.12: “... a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que crêem no seu nome”.

A Palavra de Deus menciona, ainda, a eleição individual de alguns homens para o ministério. Paulo afirmou que Deus o separou desde o ventre de sua mãe e o chamou pela sua graça (Gl 1.15). O mesmo aconteceu com Davi (Sl 22.10), Jeremias (1.5), Isaías (49.1) e João Batista (Lc 1.15). Contudo, essa escolha soberana do Senhor para o santo ministério não interfere em seu desejo de salvar a todos os seres humanos (1 Tm 2.4).

Essa eleição individual não exclui o livre-arbítrio, uma vez que os homens de Deus mencionados podiam desobedecer à chamada divina. Paulo deixou claro isso ao contar o testemunho de sua conversão ao rei Agripa: “E, caindo nós todos por terra, ouvi uma voz que me falava e, em língua hebraica, dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? (...) Pelo que, ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial” (At 26.14-19). E se o apóstolo tivesse desobedecido à visão?

JESUS ESCOLHEU "UM DIABO"?

Em Romanos 8.29,30, está escrito que Deus predestinou para a salvação aqueles que conheceu por antecipação: “Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”.

O Senhor conheceu — antes da fundação do mundo — todos os pecadores (Rm 5.8). E, como veremos, à luz das Escrituras, Ele predestinou, em Cristo, toda a humanidade para a salvação (Rm 11.32; 6.23; 2 Pe 3.9). Deus não se vale de sua presciência para salvar ou condenar alguém. Jesus sabia que Judas era “um diabo”; mesmo assim, chamou-o para fazer parte dos doze apóstolos (Jo 6.70).

Deus sempre soube o fim antes do começo (Is 46.10). Contudo, isso não significa que Ele tenha destinado de antemão uns à salvação e outros à perdição. A predestinação está relacionada com o plano redentor idealizado por Deus, o qual se estende a todos os seres humanos que crerem no Senhor Jesus (Jo 3.16).

Por sua presciência, Deus conhece os que o rejeitarão. Mesmo assim, não interfere, uma vez que dotou o ser humano de livre-arbítrio; Ele não viola esse princípio. Embora essa faculdade esteja grandemente prejudicada pelos efeitos do pecado, o homem tem, sim, como veremos, a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Ele não é um ser autômato, um robô, um fantoche, mas um ser responsável por seus atos.


NÃO FARIA JUSTIÇA O JUSTO JUIZ?

Deus é justo.
Em Atos 10.34, vemos que Ele não faz acepção de pessoas. Abraão até ousou perguntar-lhe: “Não faria justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18.25). O Justo Juiz, pois, negaria a sua justiça condenando indivíduos ao inferno antes da fundação do mundo?

No Areópago, em Atenas, Paulo anunciou que o Senhor deseja que toda a humanidade se arrependa, pois haverá um juízo para todos os homens (At 17.30,31). Isso significa que todas as pessoas estão predestinadas à salvação. Mas, para receber essa bênção, o homem precisa se arrepender dos seus pecados e crer que o único Mediador é Jesus Cristo (Mc 1.15; 1 Tm 2.5). O nosso Salvador “... quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4).

Ninguém pode negar que Jesus morreu por todos os seres humanos. Está escrito na Bíblia que Jesus “... é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2.2). E esse “todo o mundo” não é uma alusão a alguns privilegiados eleitos. Não! Deus, em seu plano, desejou salvar a “todos os termos da terra” (Is 45.22). É pelo fato de Jesus ter morrido por todos (Hb 2.9) que o Espírito Santo convence o mundo, e não alguns escolhidos (Jo 16.8-11).

Se a teoria calvinista da predestinação fosse verdadeira, não haveria necessidade de pregarmos o Evangelho, visto que os não-eleitos jamais seriam salvos, mesmo que ouvissem as boas novas de salvação! Entretanto, Jesus mandou pregar e ensinar a todos, em todo o mundo (At 1.8; Mt 28.19). Em Marcos 16.16, o Senhor afirmou: “... quem não crer será condenado”. Ele não teria dito isso se de fato tivesse ocorrido uma eleição incondicional e arbitrária antes que o mundo existisse.

Deus é amoroso. A Palavra do Senhor salienta que o seu amor é infinito e ilimitado (Jo 3.16; Rm 5.7,8). Jesus quer salvar os piores pecadores! Ele os vê como ovelhas que não têm Pastor (Mt 9.36). “Desejaria eu, de qualquer maneira a morte do ímpio? Diz o Senhor Jeová; não desejo, antes, que se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez 18.23). Como poderia ter condenado de antemão aqueles a quem Ele mesmo deseja salvar?

Em João 6.51, a mensagem de Jesus foi ainda mais clara: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo”. Observe: Jesus ofereceu-se em sacrifício pela vida do mundo. E, quando alguém crê nEle, recebe a vida eterna (Jo 3.36). A Palavra de Deus diz ainda: “... se um morreu por todos, logo, todos morreram” (2 Co 5.14).

NÃO EXISTE LIVRE-ARBÍTRIO?

Os seguidores do calvinismo extremista — um evangelho teologicocêntrico, e não biblicocêntrico — afirmam que o livre-arbítrio ficou praticamente sem efeito depois da entrada do pecado no mundo. Contudo, as Santas Escrituras mostram que Deus, em todas as épocas, antes e depois da entrada do pecado no mundo, respeitou as decisões humanas.

Nos dias de Moisés, Josué e Elias (muito tempo depois da Queda), vemos como Deus desejava que os homens fizessem escolhas: “... te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente”; “... escolhei hoje a quem sirvais...”; “Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor é Deus, segui-o; e, se Baal, segui-o” (Dt 30.19; Js 24.15; 1 Rs 18.21).

Em Isaías 1.18, Deus convidou os pecadores a argüi-lo, a fim de que recebessem o perdão de seus mais terríveis pecados, porém deixou claro que respeitaria as suas decisões: “Se quiserdes, e ouvirdes, comereis o bem desta terra. Mas, se recusardes e fordes rebeldes, sereis devorados à espada, porque a boca do Senhor o disse” (Is 1.19,20). O salmista escolheu o caminho da verdade (Sl 119.30) e, sem duvidar, teve segurança para fazer este pedido a Deus: “Venha a tua mão socorrer-me, pois escolhi os teus preceitos” (v. 173).

Em Apocalipse 22.17, no último livro da Bíblia, a água da vida não é oferecida a alguns eleitos para a salvação. Não! Jesus a oferece a quem tem sede e quer tomá-la de graça! Aleluia! Outrossim, o Senhor se importa com aqueles que invocam o seu nome (At 2.21). Por isso, ao pregar a Palavra de Cristo na casa de Cornélio, Pedro afirmou: “A este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele crêem receberão o perdão dos pecados pelo seu nome” (At 10.43).

Não existe graça irresistível, pois o homem pode, sim, recusar-se a aceitar o chamamento do Senhor (Hb 3.12; 12.25; At 7.51; 13.46). As Escrituras afirmam que Deus está conosco enquanto estivermos com Ele; se o deixarmos, também nos deixará (2 Cr 15.2). Em Hebreus 3.15, está escrito: “Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração, como na provocação”.

Mas ai daqueles que resistem à graça. Não serão condenados por estarem predestinados ao inferno. Antes, serão lançados no lago de fogo por resistirem ao Espírito da graça: “De quanto maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue do testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?” (Hb 10.29).

Os seguidores do calvinismo se apegam a passagens isoladas, como João 6.37,44 e 10.29, para afirmar que apenas alguns eleitos são encaminhados pelo Pai a Jesus. Na verdade, tais passagens mostram, à luz do contexto, que até para aceitar a chamada para a salvação, o ser humano precisa de capacitação divina. É Deus quem concede a fé quando o pecador ouve a Palavra (Rm 10.17); e é Ele quem dá a possibilidade de arrependimento (At 11.18). A salvação é pela graça de Deus (Ef 2.8,9).

Não há méritos humanos na salvação. Ninguém pode se gloriar: “Eu sou salvo porque tive fé” ou “Sou regenerado porque eu me arrependi”. Deus pôs na alma humana três faculdades: sentimento, intelecto e vontade. Por elas o homem pode ouvir a mensagem do evangelho, sentir suas misérias e crer para a salvação (Rm 10.9,10; Lc 15.17-19). Em outras palavras, Deus indica o caminho (Jo 14.6) e provê os meios de o homem entrar por esse caminho. E cada indivíduo, de posse desses meios, escolhe entre a vida e a morte (Mt 7.13,14).

UMA VEZ SALVO, SALVO PARA SEMPRE?

Paulo sabia que a manutenção da salvação depende de nossa cooperação (1 Tm 4.16). Por isso, alertou os crentes de Corinto: “Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado, o qual também recebestes e no qual também permaneceis; pelo qual também sois salvos, se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado, se é que não crestes em vão” (1 Co 15.1-2). Note: a manutenção da salvação está condicionada à obediência ao evangelho verdadeiro (2 Co 11.3,4; Gl 1.8).

Em Mateus 23.37, Jesus disse: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!” Observe que Jesus quis ajuntar os filhos de Jerusalém, porém ela não quis que Ele assim o fizesse. Isso é livre-arbítrio!

Nenhuma pessoa foi destinada de antemão à condenação (Is 50.2; Ez 18.32). Pedro mencionou falsos doutores que negariam o Senhor que os resgatou (2 Pe 2.1). E, ao final deste capítulo, disse: “Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro” (v. 20). Isso significa que as pessoas resgatadas, compradas, purificadas pelo sangue de Jesus, justificadas, regeneradas, santificadas e libertas, se não guardarem o que têm recebido do Senhor, perderão a salvação!

Pedro ainda afirmou: “... melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça, do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado” (2 Pe 2.21).Por isso, Jesus alerta-nos: “... guarda o que tens, para que ninguém tome a tua coroa” (Ap 3.11). Temos coroas reservadas para o Tribunal de Cristo, quando seremos julgados mediantes às nossas obras (2 Tm 4.7,8; Ap 2.11), mas também temos uma coroa aqui, pois temos uma posição em Cristo; estamos reinando com Ele em vida (Rm 5.17; 1 Co 4.8; Ap 5.8-10; 1 Pe 2.9,10).

OS ELEITOS PODEM PERDER A SALVAÇÃO?

Aos que se desviam da verdade o Senhor dá tempo para que se arrependam (Ap 2.20,21). Alguns salvos em Cristo, resgatados, infelizmente têm apostatado da fé, “... dando ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios” (1 Tm 4.1). E não pense que esse texto se refere aos ímpios. Não! Pois eles não têm de que apostatar! Sim, os eleitos podem perder a salvação se não permanecerem em Cristo!

Não é isso que vemos, ao estudar sobre as igrejas da Ásia? Os conselhos para aquelas igrejas abrangeram dois aspectos: arrependimento e manutenção da posição em Cristo. A ordem “Arrepende-te” foi transmitida à maioria (Ap 2.5,16; 3.3,19). Para as outras, o Senhor disse que deveriam guardar, reter, conservar o que tinham, até à morte, para que não perdessem a coroa (Ap 2.10,25; 3.11). O crente que se acomoda, pensando estar salvo para sempre, está iludido e dormindo espiritualmente.

Paulo disse aos seus irmãos em Cristo, em Éfeso: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Ef 5.14). O pastor da igreja em Sardes estava morto — e não sabia! — e precisava tomar uma posição diante do Senhor (Ap 3.1). Conquanto o Senhor Jesus tenha feito a sua parte, ao nos resgatar, temos de operar ou desenvolver a nossa salvação (Fp 2.12; Ef 2.10; Hb 6.9). Em 2 Timóteo 2.10, está escrito: “... tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também alcancem a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna”.

Fomos transportados das trevas para a luz; e da morte para a vida (1 Pe 2.9; Jo 5.24). Contudo, se negarmos o Senhor, Ele também nos negará (2 Tm 2.12; Mt 10.32,33). Os nossos nomes estão registrados no livro da vida, mas isso não autentica a máxima calvinista: “Uma vez salvo, salvo para sempre”. A Palavra de Deus afirma: “O que vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da vida...” (Ap 3.5). Ou seja, Jesus não riscará o nome de quem vencer!

O NAVIO E AS CANOAS FURADAS

Há um episódio narrado em Atos 27 que nos serve de ilustração para resumir o que a Palavra de Deus diz sobre a predestinação. Quando Paulo navegava como prisioneiro para a Itália, houve uma grande tempestade no mar (vv. 18-20). Deus, então, enviou um anjo para dizer-lhe que todos escapariam vivos. E Paulo transmitiu a mensagem aos que estavam no navio, estabelecendo uma condição: permanecer na embarcação (vv. 22-31). Conclusão: “E assim aconteceu que todos chegaram à terra, a salvo” (v. 44).

Quando o pecado entrou no mundo, todos os homens foram nivelados ao estado de pecadores (Rm 3.23; 5.12). Deus podia ter posto fim ao “projeto homem”, porém já tinha um plano redentor: “... encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia” (Rm 11.32). Em outras palavras, é como se Deus colocasse à disposição de toda a humanidade o “navio da salvação”. Quem entrar nesse navio e permanecer nele até ao fim chegará ao “porto da salvação” (Hb 3.6). Quem quiser pode entrar em outras “embarcações” ou “canoas furadas”.

Contudo, é melhor permanecer no “navio da salvação”, em Cristo! Só há, pois, a segurança da salvação para as ovelhas que permanecerem na mão do Bom Pastor, que disse: “... dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10.28). Ninguém pode arrebatar, raptar, o crente da mão de Jesus. Todavia, o crente pode negar a sua fé, seguindo a falsos doutores (2 Tm 4.1-5).

Quem confia cegamente na segurança da salvação, sem santificação e vida de renúncia, pode ser comparado àquelas pessoas que embarcaram no Titanic. Achavam que o navio jamais afundaria... Que engano! Em 2 Coríntios 1.13, está escrito: “Porque nenhumas outras coisas vos escrevemos, senão as que já sabeis ou também reconheceis; e espero que também até ao fim as reconhecereis”. Vigiemos, pois, para que não soframos um “naufrágio na fé” (1 Tm 1.19). Atentemos para a advertência da Palavra de Deus, que diz: “Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia” (1 Co 10.12).

segunda-feira, 20 de junho de 2011

JUSTIÇA JUDAICA


JUSTIÇA



Declarou-se amplamente que a justiça é o valor moral que caracteriza singularmente o Judaísmo tanto conceitual como historicamente. Historicamente, a busca judaica pela justiça começa com declarações bíblicas do tipo “ Justiça, justiça (em hebraico tzedek) perseguirás” (Deut. 16:20). Do ponto de vista conceitual, a justiça ocupa um lugar central na visão judaica do mundo e muitos outros conceitos judaicos básicos evoluem à volta da noção de justiça.

O primeiro atributo de ação de D’us é a justiça (em hebraico mishpat: Gen. 18:25; Sl. 9:5). Seus mandamentos aos homens, e especialmente para Israel, têm essencialmente o objetivo de estabelecer a justiça no mundo (ver Sl. 199:137-44). Os homens cumprem esta finalidade agindo de acordo com as leis de D’us e de outras formas imitando a qualidade divina da justiça (Deut. 13:5; Sot. 14a; Maimônides, Guia dos Perplexos 1:54, 3:54). Este processo de estabelecimento de justiça no mundo deverá ser completado no reino messiânico de justiça universal (ver Isa. 11:5ff.; Deut.R. 5:7). Portanto, assim como a própria Torá, que é um paradigma, toda a História começa e termina com justiça (Ex. R. 30:19).

Os dois principais termos bíblicos para justiça são tzedek e tzedaká. Eles se referem tanto à justiça divina como à humana, bem como às “obras da justiça” (Ex. 9:27; Prov. 10:25; Sl. 18:21-25). Esta justiça é essencialmente um sinônimo de divindade (Isa. 5:16). Ademais, na Bíblia, a “justiça” é tão consistentemente comparada com a “misericórdia” ou com a “graça” (chesed; Isa. 45:19, Sl. 103:17ff.), que nos tempos talmúdicos e posteriores, o termo tzedaká veio a significar quase que exclusivamente “caridade” ou “trabalhos de amor” (BB 10b)e a noção de “justiça” é apresentada pelos termos “verdade” (emet), “confiança” (emuná) e “integridade” (yosher). Finalmente, ao longo da literatura, outros valores, principalmente paz e redenção, são consistentemente associados com justiça, como sendo seus componentes ou produtos (Os.12:7; Sl. 15:1; Ta’an. 6:12). Portanto, todo o espectro de valores éticos está virtualmente compreendido dentro da noção de justiça.

A justiça judaica é diferente da visão filosófica clássica (Grega - Ocidental) deste conceito. Nesta última, a justiça é geralmente considerada sob os títulos de “distributiva” e “retribuidora”. Estes conceitos, é claro, também são englobados na tzedaká, mas enquanto a justiça “distributiva” e “retribuidora” são essencialmente princípios de procedimento (isto é, como fazer as coisas), a justiça judaica é essencialmente substantiva (isto é, como deveria ser a vida humana). A justiça substantiva depende de um compromisso final de valores (isto é, messiânico). Isto também é deixado claro pelos pensadores modernos tais como Hermann Cohen, que encara a sociedade justa como a sociedade ideal de dignidade humana e liberdade universais (Ethik des reinem Willens (1904). capítulo 15; Religion der Vernunft aus des Quellen des Judentums (1929), capítulo 19) e Ch. Perelman, que em sua análise de justiça escreve “.... e no final, cada um sempre enfrentará uma certa visão irredutível do mundo expressando valores e aspirações não racionais [embora justificáveis]” (Perelman, Justice (1967), 54). Embora Perelman não reivindica estar discutindo um conceito particularmente judaico, ele tem consciência do conteúdo judaico de seu etos[14] (cf. W. Kaufmann em: Review of Metaphysics, 23 (1969), 211, 224ff., 236).

A visão substantiva da justiça se preocupa com a melhoria completa da vida humana e, acima de tudo, da vida social. Assim, se espalha por todas as relações humanas e as instituições sociais – o estado ( a dicotomia comum entre a responsabilidade individual e coletiva, frequentemente ilustrada pelo contraste entre Ex. 20:5 e Ezek. 18, é transcendida no reconhecimento da interrelação dialética entre as duas em Deut. 24:16, juntamente com Lev. 19:16 (ver também Sanh. 73a) e no envolvimento contemporâneo do cidadão individual nas ações coletivas de sua nação), tribunais (por ex. 11 Chron. 19:6. Yad, Sanhedrin, 23:8-10), economia (Lev. 19:36) e assuntos particulares. Na realidade, a única prática positiva também imposta a todos os não judeus é o estabelecimento de tribunais de justiça (Sanh. 56a).

A justiça não é contrastada com amor, mas sim correlacionada com ele. Na literatura rabínica, na filosofia judaica e na Kabalá, D’us é descrito como atuando a partir de dois “atributos de legitimidade e compaixão” (PR 5:11,40:2; Maimônides, Guia dos Perplexos 3:53).

O problema crítico pertencente à justiça é aquele da teodicéia (doutrina da justiça divina): se D’us é justo e rege o mundo, como podem ser explicados os sucessos do mal? O problema da teodicéia, um tema recorrente na literatura, é levantado pelo Salmista e é o tema de Jó. E, é também o assunto da história de Elie Wiesel, escrita na esteira do Holocausto, na qual três rabinos intimam D’us para um julgamento e o consideram culpado. Na história do pensamento judaico, embora muitas soluções para o problema tenham sido sugeridas, entre elas a noção essencialmente neoplatônica[15] de que o mal é privação, isto é, que não é algo positivo em si, mas meramente a ausência do bem (Guia dos Perplexos 3:18-25); a visão de que o mal e o sofrimento constituem provações do justo, ou as “aflições do amor” na literatura rabínica, isto é, D’us testa os justos fazendo-os sofrer em seu mundo; e a doutrina da recompensa e punição no Olam há-Ba[16] (Sanh. 90b-92a: Albo, Sefer há-Ikkarim 1:15).

Os rabinos encaram Moisés como o ideal da justiça rigorosa e inflexível, em contraste com Arão [ou Aarão], que é o protótipo do ideal de paz. Eles interpretam o incidente do Bezerro de Ouro como exemplo do problema que surge com o choque destes dois ideais (cf. Sanh. 6a-7b e paralelos). No mesmo contexto, eles sugerem que o compromisso em casos legais possa constituir uma negação da justiça (ibid.)

Embora não seja uma solução, pode se tentar dar uma resposta ao problema da teodicéia em duas direções: (a) para protestar contra a injustiça na tradição de Jó, de Honi ha-Me’aggel e do líder hassídico Levi Isaac de Berdichev, que é possível apenas perante uma autoridade responsável, isto é, um D’us justo; (b) para encarar a justiça como um conceito normativo ao invés de descritivo, como o faz Cohen, que escreve que a “justiça mantém a tensão entre a realidade e o ideal eterno” (Religion der Vernunft, p.569). De acordo com este ponto de vista, a justiça pode ser procurada apenas no futuro – seja no futuro da humanidade como um todo (a Era Messiânica) ou do indivíduo – isto é, em D’us, cuja justiça de julgamento é confirmada na benção recitada na hora da morte, “abençoado seja o Juiz justo”.

O homem é obrigado a imitar a D’us agindo de acordo com o princípio de justiça com compaixão (Miquéias 6:8; Mak. 24b; BM 30b, 83a) e – na consumação final da história – a justiça e a misericórdia se tornam idênticas.

justiça no Antigo

O conceito de justiça no Antigo Testamento a partir de Juízes 5.9-12

Resumo

O conceito de sedaqah, em Juízes 5.11, representa certamente o significado mais primitivo usado e confessado pelo povo israelita. Longe de carregar um sentido simplesmente jurídico ou de uma ordem cósmica, a expressão sidekot Yhwh, traduzida por justiças de Javé, deve ser entendida como os atos salvíficos de Javé. Esta interpretação é reforçada pelo verbo hebraico tanah, recontar que rege a frase lá se recontam os atos de justiça de Javé. O esforço de recontar os atos salvíficos de Javé, no passado, tinha o objetivo de resgatar a fé no Deus que age em favor dos necessitados e trazer alento para o povo diante do desafio de conquistar um espaço para morar, plantar e criar filhos e filhas com dignidade.

Palavras-chave

Cântico de Débora - voluntários - tribalismo justiça - atos salvíficos

Tércio Machado Siqueira é pastor Metodista, doutor em Ciências da Religião e professor de Antigo Testamento da FATEO/UMESP.


O Cântico de Débora (Jz 5.1–31) não é somente importante por contribuir com o argumento da antiguidade da perícope do Sinai (Ex 19.1;Nm 10.10), mas também por revelar, provavelmente, o mais original conceito de sedaqah, justiça, no Antigo Testamento (Jz 5.11).

1. O texto de Juízes 5.9-12

Esta sub-unidade literária do Cântico de Débora mostra a sua importância pela consistência teológica de suas palavras. O autor dessa composição mostra seu coerente pensar teológico: a história do povo é o lugar apropriado para fazer teologia. Nesse texto, o que é mais importante são os atos salvíficos de Javé, e não a liderança que comanda e participa dessa batalha tão importante para o povo de Israel.

(A) – A tradução

Esta é uma tradução provisória de Juízes 5.9-12. Nesta, foi tentado captar o sentido mais original possível das palavras e expressões hebraicas. Da mesma forma, tentou-se resgatar a forma poética desse poema, procurando dispor as frases do texto com os seus paralelismos, a fim de facilitar o seu entendimento e interpretação.

  1. Meu coração mantém-se em ordem (inclina-se) para os comandantes de Israel,os que se apresentam voluntariamente. Bendigam a Javé!
  2. Os que cavalgam jumentas vermelho-amareladas, os que sentam sobre vestes, e os que andam sobre o caminho. Prestem atenção!
  3. Na voz dos que distribuem água entre os bebedouros! Lá se recontam os atos de justiça de Javé, os atos de justiça dos seus camponeses em Israel!Então o povo de Javé desceu (desceram) para os portões.
  4. Desperta, desperta, Débora! Desperta, desperta, fala um canto! Levanta, Baraque, e leva cativo teu cativo, filho de Abinoão!

(B) – A estrutura e a dinâmica literária de Juízes 5.9–12

Este cântico apresenta-se com uma roupagem litúrgica bastante evidente. A subunidade, Jz 5.9–12, é parte dessa ampla liturgia (v. 1–31) e mostra a convocação final das tribos, bem como a relação dos combatentes, para a batalha contra os cananeus na Planície de Meguido. Eis uma tentativa de entender e interpretar a dinâmica deste pequeno parágrafo pertencente ao Cântico de Débora:

I – Convocação/relação dos combatentes de Israel: 9–11

  1. Declaração: Meu coração inclina-se para...
  2. Relação dos voluntários combatentes: 9b–11a.

1. guerreiros na batalha: 9b–10 – Os que...

2. retaguarda da batalha: Os que distribuem água entre os bebedouros: 11

[a] Distribuem suprimentos: água – 11a.

[b] Celebram os atos de justiça: 11b

  1. A primeira movimentação da tropa: Então o povo... desceu para os portões: 11c

II – Apelos antes da batalha: 12

  1. À Débora: 12a.
  1. Despertar para a luta
  2. Cantar
  1. A Baraque: 12b
  1. Levantar
  2. Prender os inimigos
  3. Menção da identidade de Baraque.

Inicialmente, é preciso ressaltar que os versos 9–12, juntamente com os versos 2–5, mostram uma dinâmica literária e teológica que a destaca do resto da perícope (v. 1-31). Como exemplo disso, a primeira parte dessa sub-unidade (v. 9–11) relaciona os combatentes que se ofereceram para a batalha contra o príncipe cananeu de nome Sísera, conforme Juízes 4.1–24. É o momento decisivo da luta, pois, após essa chamada final, o povo ouvirá os distribuidores de água e, a seguir, descerá das montanhas, onde moram, para combater, nos portões, as treinadas e equipadas milícias das cidades-estado de Canaã. Os versos 9–10 relacionam os voluntários combatentes israelitas, sem fazer comentários sobre suas funções específicas. Porém, o verso 11 menciona a participação dos distribuidores de água, bem como as suas funções no conflito. A segunda e última parte dessa perícope contém um duplo apelo, dirigido a Débora e a Baraque, especificando as respectivas funções (v.12). Seriam eles os comandantes? Provavelmente, pois somente os nomes de Débora e Baraque são mencionados com funções específicas. Portanto, entre a convocação (v. 9–10) e o apelo final (v. 12) está a preparação básica para o combate. Essa preparação não consistirá de armas e técnicas de guerra, mas ouvir a narração dos atos salvíficos de Javé no passado (v. 11).

(C) – A data do Cântico de Débora

Este é um item que se reveste de grande importância, em vista de algumas informações contidas no texto. Naturalmente que recorreremos ao Cântico como um todo, já que os versos 9–2 são parte dele. Dois pontos importantes devem ser levados em consideração nesta análise: primeiramente, Juízes 5.1–31 tem sido avaliado, pelos principais pesquisadores e pesquisadoras, como o mais primitivo texto do Antigo Testamento, por seu rico elenco de termos e expressões arcaicas (J. Alberto Soggin, Judges, London: SCM Press LTD, 1981, p.79-101); em segundo lugar, a linguagem, os costumes e as referências históricas remetem esse texto para o século XII a.C.

Os versos 9–12 apontam para um tipo de combate que guarda as características da Guerra Santa. Os sinais desse tipo de combate estão claros no texto:

(a) o verso 9b fala de combatentes voluntários. Essa é uma das marcas da guerra santa, em Israel, empreendida no contexto do período tribal. A raiz hebraica ndb, apresentar-se voluntariamente, tem uma ocorrência considerada baixa na Bíblia Hebraica, porém muito significativa. O determinante no significado da raiz ndb é o elemento da “espontaneidade” (v. 2 e 9). Essa raiz aparece, especialmente, nos textos ligados ao culto (Lv 22.18; Nm 15.3; Ez 46.12). As experiências do êxodo e as dificuldades enfrentadas para o estabelecimento em Canaã desenvolveram, entre o povo, a idéia que Javé é o comandante das batalhas para conquistar um espaço na terra para morar, plantar e educar os filhos e filhas (Ex 15.3; 17.16; 1Sm 18.17; 25.28).

(b) Essa guerra possuía um forte caráter religioso, e, por isso, a batalha e os seus guerreiros eram purificados, antes da luta (1Sm 21.6; 2Sm 11.11) e a arma usada é a música, seja entoada pelas trombetas (Js 6.1-16) ou pelas canções de Débora (Jz 5.12). O verso 11 também menciona traços da fé israelita como meios de preparação para a batalha.

Na verdade, a batalha descrita em Juízes 5.1–31 guarda as características da guerra santa e, como tal, esse tipo de enfrentamento é próprio do período anterior aos reinados de Davi e Salomão. A partir de Davi, desenvolveu-se a idéia de que a organização tribal era uma forma ingênua de enfrentar os complexos desafios econômicos e políticos dos novos tempos. Especialmente com Salomão, foram montados exércitos profissionais com soldados mercenários. Por isso, novas bases militares surgiram para facilitar a defesa da terra e conquista de outros territórios (1Rs 9.15–19; 10.26 — conforme John Bright, História de Israel, São Paulo: Paulinas, 1981, p. 275–281; Herbert Donner, História de Israel, Volume 1, São Leopoldo/Petrópolis: Editora Sinodal/Editora Vozes, 1997, p. 227–264).

2. O Cântico de Débora e o projeto tribalista

O propósito político de Débora deve ser entendido à luz da fé javista e das grandes mudanças que ocorreram no contexto político-social do Antigo Oriente Médio, a partir do século XIII a.C.

(A) – O projeto tribal israelita e a história dos povos vizinhos

O tribalismo, entre os israelitas, está situado em um curto e importante período da história da humanidade. Por volta de 1250 anos antes de Jesus, o Antigo Oriente Médio passou por uma revolução tecnológica que marcou profundamente a vida social de seus habitantes. Trata-se do início da época do ferro.

No período do bronze, Canaã era uma região dividida por cidades-estado. Não havia um elo que as integrava. Com a descoberta da produção do ferro, novas possibilidades surgiram para os agricultores e os conquistadores de terras. Ao mesmo tempo, a descoberta do sistema de vedação de cisternas possibilitou a habitação nas montanhas. Além dessas duas novidades, é preciso destacar que as duas principais forças militares — Egito e Mesopotâmia — estavam enfraquecidas, sem possibilidades de uma ação na região dos cananeus. Isso facilitou, certamente, a invasão dos Povos do Mar que ajudaram a desestruturar as cidades-estado, sem, contudo, dominá-las e assumi-las. O caminho estava aberto para os israelitas estabelecerem-se na terra de Canaã. Trata-se de um milagre histórico que de uma forma poética é contado no Cântico de Débora.

Em meio a essas mudanças, os israelitas chegaram em Canaã com um novo projeto político. Assim, o tribalismo é um projeto histórico planejado e desenvolvido a partir de setores sociais oprimidos pelas cidades-estado e os israelitas moradores das montanhas (Norman K. Gottwald, Tribos de Iahweh, São Paulo: Paulinas, 1986). O Cântico de Débora deve ser visto e interpretado à luz desse contexto.

(B) – O projeto tribal israelita e a teologia

O Cântico de Débora apresenta-se como uma descrição bastante primitiva da prática teológica do povo bíblico. Portanto, seu valor se reveste de grande importância para a pesquisa da Bíblia. Eis algumas observações a partir do Cântico de Débora.

Os versos 9–12 estão envolvidos com a linguagem teológica. Não há como deixar de pensar que eles fazem parte de uma primitiva liturgia do culto, já que duas expressões sinalizam esse ambiente: bendigam a Javé (v. 9c) e prestem atenção (v.10d). Levando em consideração que esse texto é antigo, é possível concluir que ele nos fornece excelentes elementos para avaliar a prática teológica dos israelitas no período tribal. Para tanto, é preciso destacar que Juízes 5.9–12 conduz conceitos antigos, próprios da sociedade tribal israelita.

I – O projeto tribal e o voluntariado do povo

O verbo empregado no verso 9 é nadab, que conduz o sentido de oferecer-se livremente, apresentar-se voluntariamente para exercer uma função ou defender uma causa. O elemento da voluntariedade é sempre determinante no emprego desse verbo. Tanto o verbo nadab como o substantivo nedabah, voluntariedade, dádiva espontânea, refere-se primariamente ao âmbito do culto (Ex 25.2; 35.21,39). Esses termos são usados para se referirem às ofertas para o sacrifício (Lv 22.18), contribuições para o Templo (Ed 1.6), favor divino (Sl 68.10) e, por fim, expressar a livre decisão ou escolha para agir em uma determinada missão (Jz 5.2,9; Ed 7.13; Ne 11.2). O detalhe determinante, no uso de nadab e nedabah, é que a decisão ou a escolha voluntária está em função do favor de Deus. No caso específico do Cântico de Débora, a decisão voluntária dos camponeses israelitas correspondia a uma resposta ao ato salvífico de Deus, libertando-os da escravidão, sustentando-os quarenta anos no deserto e dando-lhes uma terra para morar em paz. A ocorrência de elementos literários litúrgicos, em Juízes 5.9–12, reforça a idéia de que a intenção do Cântico de Débora é uma liturgia que está associada à Guerra Santa.

II – O projeto tribal e o conceito de sedaqah, justiça

O Cântico de Débora não menciona armas disponíveis aos combatentes israelitas, mas fala de voluntários para enfrentar os exércitos dos reis das cidades-estado. Certamente, entre os israelitas o medo estava presente, mas, apesar disso, havia disponibilidade entre as pessoas ocupadas: os que montam jumentas, os que sentam nos tribunais, os que andam a pé e os distribuidores de água (v. 9–11).

Há um detalhe muito interessante nos versos 9–11. Com exceção dos distribuidores de água, o texto não faz menção da função dos outros grupos de combatentes voluntários. Qual seria o motivo dessa extensa referência da participação dos distribuidores de água? Eis uma questão interessante a ser analisada.

(a) A importância da ação dos distribuidores de água, nesse combate, é grande, pois somente após a participação deles é que os combatentes desciam das montanhas para irem em direção aos portões das cidades-estado. Em outras palavras, o início do combate aos reis opressores dependia da participação desse grupo que atuava junto aos bebedouros.

(b) O verso 11 menciona dois verbos para referir-se à ação dos distribuidores de água: hasas, distribuir e tanah, recontar, narrar de novo. Aparentemente, as ações desses verbos são divergentes; porém, eles se completam por meio da voz dos distribuidores de água. Enquanto eles repartiam água, junto aos bebedouros, eles celebravam, com os demais voluntários, isto é, os que montam jumentas, os que sentam nos tribunais e os que andam a pé.

(c) A função dos distribuidores de água não é, simplesmente, matar a sede dos combatentes israelitas. Segundo Juízes 5.11, os voluntários israelitas, antes de descer para os portões, deveriam escutar a voz dos distribuidores de água. O texto não faz menção acerca da maneira como eles distribuíam água, mas especifica que eles recontavam as histórias da atuação de Javé no passado (Carlos A. Dreher, “A formação social do Israel pré-estatal. Uma tentativa de reconstrução histórica, a partir do Cântico de Débora (Jz 5)”, Em: Estudos Teológicos, 2, 1986, p. 169–201).

(d) A função dos distribuidores de água é descrita pelo verbo tanah, que aqui deve ser traduzido por recontar, contar de novo (v. 11) ou cantar (Ex 32.18; Jz 11.40; Sl 8.2) os sidaqot, justiça de Javé. Na descrição da atuação dos israelitas que distribuíam água para os combatentes, o que chama atenção é a afirmação de que eles recontavam as sideqot, justiças, de Javé para os combatentes. Isso sugere que no plano de combate dos camponeses israelitas incluía uma celebração cúltica visando rememorar os atos de justiça empreendidos por Javé no passado.

(e) Diante disso, surge uma questão que tem sido discutida, entre os estudiosos e as estudiosas, acerca da palavra hebraica sedaqah, no Antigo Testamento.

3. O conceito de sedaqah, “justiça”, no Cântico de Débora

Sem discutir o mérito da questão, é importante mencionar que há duas correntes que interpretam o sentido de sedaqah: a primeira é liderada por H.H. Schmid que associa a definição desse termo com as concepções do Antigo Oriente Médio, segundo a qual, sedaqah está relacionado com a ordem do mundo tal como foi criada (conforme Klaus Koch, “sdq ser fiel a la comunidad”, Em: Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, Volume II, E. Jenni e C. Westermann, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985, p.639-668). A segunda corrente interpreta sedaqah como uma palavra que aponta para o sentido de ações salvíficas de Javé.

O capítulo 5 do livro de Juízes carrega as marcas de um texto escrito no século XII a.C. Esse é um tipo de hino que se assemelha ao cântico de vitória de Moisés e os filhos de Israel (Ex 15.1–18). Tanto o cântico de Moisés como o de Débora cristalizaram-se num poema, tornando-se hinos celebrativos que se perpetuaram na memória dos crentes e de suas liturgias. Ambos cânticos exaltam a atuação de Javé em favor do povo hebreu. Muito mais significativo que a data são as informações históricas e teológicas que esses textos conduzem e propagam, incentivando os crentes, através das gerações, a exercerem a fé no Deus que ouve o clamor, vê a angústia dos que sofrem opressão e os liberta. Esses dois cânticos não tencionam contar e exaltar a prosperidade e a superioridade de Israel e o poder de seu Deus em fazê-lo sempre vitorioso, através da eliminação de seus concorrentes pela posse da terra. Há um motivo muito maior que estimula o povo bíblico a lutar: o direito de cada povo ter uma terra para criar e educar os seus filhos com dignidade.

O Cântico de Débora exerce uma função importante no cenário teológico de toda Bíblia. Ele mostra que, particularmente, o Antigo Testamento não contém um esboço de doutrina, mas ele é uma narrativa, uma história de um povo, vivendo entre muitos povos. As confissões de fé, veiculadas pelos hinos, não são composições poéticas conceituais desvinculadas da realidade, mas têm relação direta com a história. Portanto, a teologia do Antigo Testamento nasce da história da experiência de vida do povo hebreu. Assim deve ser lido o Cântico de Débora: como uma confissão de fé, um testemunho ou um “querigma”.

Mesmo sendo descrito como um bando de escravos fugitivos que chegaram à terra de Canaã, Israel construiu a sua identidade teológica a partir de experiências históricas. Certamente foi muito grande a pressão cultural exercida pelos egípcios, povos da Mesopotâmia e os cananeus.

O conceito de sedaqah, justiça, que o Cântico de Débora revela, não pode ser desvinculado da história salvífica, narrada nas páginas de toda a Bíblia.

Na voz dos que distribuem água entre os bebedouros!

Lá se recontam os atos de justiça de Javé,

os atos de justiça dos seus

camponeses em Israel!

Então o povo de Javé desceu (desceram) para os portões (v. 11).

O verso 11 possui uma formulação extraordinariamente significativa para o estudo de sedaqah, justiça, particularmente, no Antigo Testamento. Ao contrário do que se espera ouvir falar dos promotores da justiça, nesse hino são os distribuidores de água que têm a tarefa de exercê-la entre os camponeses combatentes. Nessa descrição, fica claro que a missão dos carregadores de água não é “fazer justiça” nos portões ou nos tribunais. O verso 11a declara que, próximos aos bebedouros, eles recontam os atos de justiças de Javé.

Nos versos 9–12, dois detalhes chamam atenção. Primeiro, o sujeito das sidekot, atos de justiça é Yahweh. Essa expressão, no verso 11, não pertence ao âmbito jurídico, mas ela se refere à intervenção libertadora de Javé, no passado. Por que tal conclusão? O emprego do substantivo sedeq, justiça, no plural, ocorre mais três vezes no Antigo Testamento. No Salmo 103.6, o compositor mostra que Javé realiza sideqot para o seu povo, particularmente aos oprimidos. Também o historiador, em 1 Samuel 12.7, menciona que a memória das ações justas de Javé, em favor do povo, deve ser lembrada e recontada nas celebrações cúlticas do povo. O profeta Miquéias, em sua crítica à formalidade do culto, apela ao povo de Judá para que reconheça as sideqot, ações salvíficas, de Javé no passado. Essa ação é para o bem do povo (Dt 6.25; 24.13) e, na ausência da sedaqah, todo Israel lamentava (Is 59.9,14). Esses textos revelam que o povo bíblico, especialmente nos primeiros momentos da chegada a Canaã, buscava forças para enfrentar suas complexas lutas de adaptação em Canaã. De uma certa forma, a celebração da Páscoa tinha o mesmo propósito (conforme Ex 12.21–28).

Em segundo lugar, fica claro que os voluntários que se movimentam para a batalha — os que montam, os que sentam, os que andam pelos caminhos — são convidados a fazer um “breve curso preparatório”, isto é, ouvir a voz dos distribuidores de água, junto aos bebedouros, recontando as justiças de Javé, isto é, as Suas intervenções libertadoras em favor do povo. O detalhe significativo, nessa tarefa de recontar a história, é a ausência do pessoal do culto de Jerusalém. Essa memória é trazida por trabalhadores, isto é, distribuidores de água junto aos poços. Apesar de não ter vínculo com um espaço oficial de culto, o ato de fé ocupou um espaço fundamental e vital naquela batalha. Além disso, os versos 9–12 revelam que a fé não está na razão da guerra, mas na superação dela.

Valiosas informações a partir de Juízes 5.9–12:

(1) Esta sub-unidade do Cântico de Débora fornece preciosas informações sobre o modo de ser de uma batalha cuja data pode ser atribuída ao período anterior a 1100 a.C. Este texto contribui para a definição do que poderia ser uma guerra santa: não menciona a existência de soldados mercenários, mas a tropa era constituída de membros voluntários das tribos, como fica claro no uso do verbo hebraico nadab, apresentar-se voluntariamente (v.9b); na convocação geral para as tribos (v. 10); na estreita relação com a fé javista (v. 11); com a forma ingênua de atuar na batalha: cantando e levando os cativos sem mencionar o uso de armas de morte (v. 12). São informações que contribuem para a caracterização do conceito de guerra santa.

(2) O conceito tribal está muito presente neste texto bíblico. A ausência do campo semântico de melek, rei, sinaliza que o Cântico de Débora tem sua origem no período anterior à monarquia. O voluntariado para colaborar com as tribos, na ação de defesa de seus princípios básicos, é justificado como uma resposta ao ato salvífico de Deus, libertando-os da escravidão e dando-lhes uma terra para morar, plantar e educar os filhos e filhas.

(3) O conceito de sedaqah de Javé, em Juízes 5.11, precisa ser analisado à luz do contexto do Cântico de Débora. Esse texto usa o plural construto sidekot Yhwh. Entretanto, não se pode traduzir esta expressão pura e simplesmente como “justiças de Javé”, pois tal forma comunica a idéia de estabilidade e durabilidade como as montanhas (Sl 36.7). O verso 11 de Juízes 5, todavia, refere-se às intervenções e ações de Javé na história do povo. Para se chegar a essa compreensão, é preciso observar que o verbo da frase é tanah, recontar, através de canções, as sidekot Yhwh. Por outro lado, é importante observar que, em todo o Antigo Testamento, não há lugar para se desenvolver a racionalidade científica da fé. A verdade é que na preparação para uma batalha, de importância vital para a sobrevivência do povo, para os combatentes não bastava passar conceitos e doutrinas a respeito do caráter de Deus. Acima de tudo, era preciso recontar as sidekot Yhwh, isto é, os atos libertadores de Javé que possibilitaram a libertação dos escravos hebreus. Futuramente, alguns textos bíblicos registraram a lamentação dos crentes pela ausência dessa memória que trazia alento e fortalecia a fé (Is 59.9,14).

(4) Portanto, o ato de recontar as ações salvíficas de Javé, por parte dos distribuidores de água, antes da batalha contra os cananeus, foi visto pelo autor do Cântico de Débora como um sacramento. A intenção de “recontar” os “atos salvíficos” de Javé é alentar, fortalecer na fé os temerosos combatentes. Afinal, eles iriam enfrentar exércitos adestrados e abastecidos de armas! Assim, não é difícil concluir que a fé está no ponto de partida de todos os embates da vida. Com a mesma intenção, a Igreja Cristã manteve a celebração da Páscoa, na qual a memória dos atos salvadores de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo deve ocupar um espaço vital.

“PAZ”

“PAZ” Um olhar a partir das Sagradas Escrituras Judaico-Cristãs

Não há dúvida: estamos todos mergulhados numa profunda crise social. A violência generalizada que aí está é prova disso. O tema é manchete de jornais e revistas, bem como chamada alarmante dos programas de TV e de tele-jornais. Nas grandes capitais do Brasil, e até mesmo em muitas cidades do interior, as famílias, acuadas pelo medo, mudam de hábito: ficar em casa virou um grande programa para a noite e finais de semana. Para muitas pessoas, o portão de casa ou do prédio é o limite do mundo.

Em virtude dessa brutal situação de violência, observa-se em toda parte um grande clamor social pela paz. Esse clamor das multidões está nas ruas, por meio de grandes passeatas pela paz, e está no desejo mais profundo de cada um de nós.

Nesse contexto desafiador, uma pergunta se faz necessária: o que significa mesmo a palavra “paz”? Qual o seu real significado para o ser humano?

Numa perspectiva mais profunda, a paz não é simplesmente uma situação de ausência de violência ou de guerra; também não se garante pelo equilíbrio das forças contrárias ou pelo aumento de forças armadas (públicas ou particulares) que garantam “segurança”. A pedra angular da Paz é a Justiça Social, garantia da vida e da dignidade de todas as mulheres e homens na sociedade.

Mas, enquanto se luta por um mundo justo e fraterno por meio de políticas que garantam educação, profissão, trabalho, remuneração digna, moradia e saúde para a maioria, é fundamental também ir trabalhando a paz dentro de si, a tão sonhada “paz de espírito”. Quanto alguém vive em estado de paz, está em sintonia com o Deus da Bíblia, o Deus de Jesus, o mesmo “Que está aí” (um possível sentido do nome bíblico de Deus, Iahweh): no mais profundo do “eu” humano, na relação com o “outro”, na comunidade, enfim, no contexto vital em que estamos inseridos, profundamente interligado à totalidade do cosmos.

Diante da urgência dessa reflexão, procuramos neste artigo aprofundar a temática da paz, buscando compreender suas raízes que tocam a dimensão religiosa; e o faremos a partir da cultura religiosa em que estamos inseridos, por meio das Sagradas Escrituras judaico-cristãs.

1. O sentido da palavra “paz” na cultura religiosa judaica

O termo hebraico shalôm, traduzido da literatura judaica por “paz”, tem profundo significado. A “paz” nos Textos Sagrados da cultura judaica não é um pacto que possibilita uma vida tranqüila, nem o tempo da paz por oposição ao tempo da guerra... Não é mera pacividade; nada tem de semelhança com a chamada “paz de cemitério”; também não é simples ausência de crise...

Shalôm deriva de um radical que, conforme sua maneira de ser empregado, pode significar o fato de completar ou concluir um trabalho, por exemplo, completar a construção de uma casa (1Rs 9,25); o ato de restabelecer as coisas em seu antigo estado, em sua integridade, por exemplo, “apaziguar” um credor ao pagar o débito de uma transação comercial (Ex 21,34), ou cumprir os votos a Deus (Sl 50,14).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que shalôm é uma palavra que contém a idéia de perfeição e completude, situação em que tudo é perfeito. Designa o bem-estar da vida cotidiana, o estado do ser humano em que se vive em harmonia consigo mesmo, com o outro, com a comunidade, com o ecossistema em que tal comunidade está inserida e com o Deus Eterno. Quando irromper o novo tempo, o Messias esperado é chamado pelo Profeta Isaías de Príncipe da Paz: “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro maravilhoso, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz” (Is 9,5s).

Por aí dá para se entender porque nos Textos Sagrados da cultura religiosa judaica o termo apareça como saudação e como expressão de bons desejos. Não é só uma mera saudação habitual, como por exemplo “bom dia”, “até logo”. Shalôm soa como uma bênção, algo tão maravilhoso que só pode vir diretamente do poder de Deus. O povo de Deus já entoava em salmos: “Iahweh dá força ao seu povo, Iahweh abençoa seu povo com paz” (Sl 29,11). De fato, o Deus da Bíblia é concebido como o “Deus da Paz”. Por exemplo, em Js 6,24, o altar de Gedeão era chamado “Iahweh-Shalom”, que significa “Iahweh é Paz”. Shalôm é, portanto, uma saudação impregnada de bênção escatológica, uma vez que contempla um dos mais profundos desejos humanos: vida com dignidade e bem-estar.

Na literatura profética da cultura religiosa judaica, já está presente uma intuição profunda: “O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranqüilidade e na segurança para sempre” (Is 32,18). Aos poucos vai se formando a compreensão de que a paz de Iahweh Shalom é para ser construída por seus fiéis, na sociedade e no contexto histórico do tempo presente. Por aí se entende porque os profetas de Israel foram contundentes na crítica a todo comportamento social que se afasta da vontade desse Deus da Paz.

Na literatura profética, bem como em toda literatura religiosa judaica, a prática da justiça social é, sem dúvida, uma das prioridades entre as exigências do Deus de Israel, o Deus da Paz. O termo “justiça”, em hebraico sedaqah, não corresponde a uma troca de alguma coisa por outra de igual valor. Na perspectiva na literatura religiosa judaica, é algo que se estende além das relações humanas, atingindo ao sentido da própria existência humana: Pela justiça, a harmonia se expande entre as diversas criaturas de Iahweh; ela é promessa de vida e abundância, elementos constitutivos da essência de Shalôm. A injustiça rompe a unidade da obra criadora: introduz o caos no mundo e a desordem na sociedade, induzindo naturalmente à morte.

Vejamos, então, o tema da Paz, fruto da Justiça Social, em alguns desses profetas de Israel, tais como Amós, Miquéias e Isaías.

Amós, o primeiro profeta que temos conhecimento por meio da escrita, que atuou por volta de 760 a 750 a.C., em Israel (Reino do Norte), foi porta-voz da cólera divina por quem despreza o direito e escarneia da prática da justiça. Por isso o profeta denuncia a hipocrisia de um culto a Iahweh-Shalom hipócrita, desmentido diariamente pela prática daquilo que não corresponde à vontade divina:

“Ai dos que transformam o direito em veneno e atiram a justiça por terra... Eu detesto e desprezo as festas de vocês... tenho horror dessas reuniões litúrgicas... Longe de mim o barulho de seus cânticos, nem quero ouvir a música de suas liras. Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito como água e correr a justiça como riacho que não seca” (5,7.21-24).

Desse modo, Amós critica duramente a quem se ilude pensando satisfazer ao Deus da Paz apenas participando de cultos religiosos. Louvar a Deus é importante para alimentar a fé no aspecto pessoal e coletivo, mas essa prática cultual deve estar expressa no cotidiano pela prática do direito e da justiça, fundamentos da Paz Social.

Miquéias (que exerceu sua atividade profética em fins do século VIII a.C.) lembra que é impossível haver paz social enquanto se mantém a exploração econômica, empobrecendo e marginalizando socialmente grande parte da população. Ele denuncia o comércio com que se enriquece a classe dominante (“casa do ímpio”, ou seja, de quem não faz a vontade de Deus); isso terá como conseqüência profunda instabilidade social e conseqüente ausência de paz:

“Acaso posso tolerar a casa do ímpio com seus tesouros ganhos injustamente, com sua medidas falsificadas e detestáveis: Acaso devo desculpar balanças viciadas, sacolas cheias de pesos adulterados? Os ricos prosperam com a exploração, os seus habitantes só falam mentiras e têm na boca uma língua mentirosa... Você comerá, mas não matará a fome; e a fome será a sua companheira. Você guardará, mas não poderá conservar; a sua reserva, eu a entregarei aos inimigos. Você plantará,mas não colherá; esmagará azeitonas, mas não se ungirá com azeite; pisará uvas, mas não beberá vinho...” (Mq 6,9-16)

A instabilidade nas relações sociais, a violência generalizada que amedronta todas as camadas sociais é, de algum modo, já concebida pelo profeta como conseqüência das relações sociais corrompidas pela prática da injustiça e da não observância do direito: “A terra será um lugar abandonado, por causa de seus moradores, como fruto de suas más ações” (Mq 7,13).

Isaáis, profeta que viveu no século VIII a.C. e desencadeou uma verdadeira escola inspirada em seu espírito profético, deixa claro que é possível construir a Paz Social por meio da urgente mudança de comportamento pessoal, aquilo que numa linguagem religiosa chamamos de conversão:

“Lavem-se, purifiquem-se, tirem da minha vista as maldades que vocês praticam. Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem; busquem o direito, socorram o oprimido, façam justiça ao órfão, defendam a causa da viúva...” (Is 1,16-17).

Para o profeta, uma vida com fartura e dignidade, em pleno gozo da Paz, é conseqüência da opção de observar os conselhos de uma vida fundamentada na prática do direito e da justiça. Cabe ao ser humano, no seu livre arbítrio, seguir ou não ao projeto do Deus da Paz.

Na concepção da escola do profeta Isaías, a opção em observar a vontade de Deus concretiza uma aliança indispensável para instaurar um reinado de paz em meio aos grandes desafios da história:

“Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa nova, que apregoa a vitória, que diz a Sião: ‘Já reina o teu Deus’”(Is 52,7).

Os “pés do mensageiro” cheios de calos e feridas, sujos da poeira da estrada, são “belos” na poética do profeta. A razão é que tal mensageiro anuncia uma grande novidade: a reconstrução de um povo que deseja se por sob o reinado de Deus, em tempos de paz.

Esse reinado do Deus da Paz é projetado com grande apoteose para o futuro. Em Is 65,17-25 é o próprio Deus quem promete um tempo novo de alegria e paz, em que as pessoas finalmente poderão viver com dignidade, em todos os estágios da vida, desde a infância à terceira idade:

“Vejam! Eu vou criar um novo céu e uma nova terra. As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento. Por isso fiquem para sempre alegres e contentes, por causa do que vou criar. Farei de Jerusalém uma alegria, e de seu povo um regozijo... E nunca mais se ouvirá choro ou clamor. Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus dias, pois será ainda jovem quem morrer com cem anos... Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos... Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos que morram antes do tempo... Antes que me invoquem eu responderei, quando começarem a falar, eu já estarei atendendo... O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão comerá capim junto com o boi...”

Desse modo, podemos afirmar que na literatura profética de Israel já havia a consciência de que a Paz é conseqüência da prática da Justiça Social: ter uma terra fecunda para plantar e colher os frutos para ter a mesa farta e comer até se saciar; habitar em segurança, sem medo de inimigos; dormir sem temor, com as portas abertas; não ter inimigos; multiplicar-se na face da terra, podendo passar por todas as etapas da vida, da fase de criança à terceira idade... E tudo isso porque o Deus da Paz está reinando no meio do seu povo (Lv 26,1-13).

Longe de ser simples ausência de guerra, Shalom é vida em plenitude, na presença de Deus. De fato, como são belos os pés do mensageiro que anuncia esse novo tempo de paz... Nessa perspectiva poética e profética, podemos afirmar com Isaías: Como são belos os pés de quem anuncia a Boa Notícia do Reinado do Deus da Paz...

sábado, 18 de junho de 2011

Mitologia Suméria

Mitologia Suméria


A literatura criada pelos Sumérios deixou uma profunda impressão nos hebreus, e um dos aspectos mais fascinantes de reconstruir mitos e poemas épicos mesopotâmicos consiste em traçar as semelhanças, oposições e paralelos entre as criações hebraicas e sumérias. Deve-se salientar que " os sumérios não poderiam ter influenciado diretamente os hebreus, pois haviam como povo deixado de existir muito antes dos povos hebreus começarem a existir. Mas há muito poucas dúvidas de que os sumérios influenciaram profundamente os cananeus, que precederam os hebreus na terra hoje conhecida como a Palestina" (Kramer, Samuel Noah, History begins at Sumer, Chicago University Press, 1981:142). Alguns dos mais explícitos paralelos são os seguintes:

A.- Tomemos, em primeiro lugar, o mito de Enki e Ninhursag. Enki, o deus das águas doces, da mágica e da sabedoria, encontra Ninhursag, a grande Deusa Mãe e por ela se apaixona em Dilmun, o paraíso dos sumérios. Daí temos o primeiro paralelo: a idéia de um paraíso divino, o jardim dos deuses, é de origem suméria, e era conhecido como Dilmun, a terra dos imortais, situada a sudoeste da Pérsia. Também é neste mesmo Dilmun onde os babilônicos, ou seja, o povo semítico que conquistou os sumérios, localizaram a sua terra dos imortais. Existem boas evidências de que o paraíso bíblico, que é descrito como um jardim situado ao Leste do Éden, seja idêntico a Dilmun, e um exemplo disso é que do paraíso bíblico fluem as águas dos quatro rios importantes para a Antigüidade Clássica, inclusive o Tigre e o Eufrates; 2) a irrigação de Dilmun feita por Enki e Utu, o deus Sol, para satisfazer a um pedido de Ninhursag, com águas vindas do fundo da terra tem paralelo bíblico, pois no Gênesis 2:6 está escrito que "mas eis que uma névoa subiu do interior da terra e lavou toda a face do solo".

Após Enki Ter irrigado as águas de Dilmun, ele e Ninhursag fazem amor, e por sucessivas vezes, Ninhursag dá à luz a deusas-meninas, filhas dela e de Enki, mas em tempo recorde (9 dias) e sem o menor trabalho ou dor. A Eva, da Bíblia, não teve a mesma sorte de Ninhursag, tendo sido amaldiçoada com "partos na dor e no sofrimento" (mais patriarcal do que isto, difícil!)! Estas três filhas de Enki e Ninhursag crescem também em tempo recorde (9 dias).

Mas voltando ao mito, quando Ninhursag sai de Dilmun (por motivo não tão claro no mito), Enki faz amor com as três deusas - donzelas, mas abandona-as logo, provavelmente pelas deusas - meninas serem apenas pálidos reflexos de Ninhursag, o grande amor do mais sensual e volúvel dos deuses. Ao voltar a Dilmun, Ninhursag tudo vê e entende, desta vez aconselhando a jovem deusa Uttu a não se deixar levar pelo deus mais velho e experiente. Mas Uttu não consegue resistir a Enki, arrependendo-se porém depois, e indo até Ninhursag. Ninhursag aconselha Uttu a recolher o sêmen de Enki de seu corpo e enterrá-lo na terra. Uttu assim o faz, e do lugar escolhido nascem oito tipos de plantas. Enki volta e... agora quer experimentar as plantas luxuriantes e desconhecidas que ele vê em Dilmun. Guloso, ele devora os frutos das oito plantas. Ninhursag então perde a paciência, e lança "o olho da morte" em Enki, que começa a adoecer (oito partes de seu corpo ficam doentes, mais e mais a cada dia). Teria sido Enki castigado por Ninhursag por Ter abusado de frutos desconhecidos? Ao contrário de Eva no mito de Adão e Eva, aqui Enki, um deus, é o guloso, e não uma mulher mortal.

Ninhursag volta quando Enki está muito mal, e ela o cura, fazendo nascer oito deusas das partes doentes do deus das águas doces.

O mais notável, porém, é que este mito fornece uma explicação para um dos motivos mais intrigantes do mito de Adão e Eva da Bíblia, ou seja, a famosa passagem descrevendo a criação de Eva a partir da costela de Adão. Vejamos o que o emérito sumerologista Samuel Noah Kramer tem a nos dizer sobre isto: " Por que uma costela, ao invés de qualquer outra parte do corpo para criar a mulher cujo nome Eva, de acordo com a Bíblia, significa " aquela que faz viver "? Se olharmos para o mito sumério, vemos que Enki adoece pela maldição de Ninhursag, e que uma das partes de seu corpo que começa a morrer é a costela. A palavra suméria para costela é "ti". Para curar cada um dos órgãos enfermos de Enki, Ninhursag dá à luz a oito deusas. A deusa criada para curar a costela de Enki é chamada de ‘Nin-ti", "a Senhora da costela" [ Nin, em sumério, quer dizer dama, senhora: Nota da autora]. Mas a palavra suméria "ti" também significa "fazer viver". O nome "Nin-ti" pode, portanto, significar "a senhora que faz viver", bem como "a senhora/dama da costela". Portanto, um trocadilho literário extremamente arcáico foi levado à Bíblia e lá perpetuado, mas sem o seu sentido original, pois em hebráico a palavra para costela e para " aquela que faz viver" não têm nada em comum. Além do mais, ao invés de Adão ter dado vida à Eva, é Ninhursag que dá sua essência de vida a Enki, que então renasce dela" (Kramer, 1981:143-144).

Entretanto, a maior parte dos paralelos da Mitologia Suméria com a Bíblia podem ser encontrados no Gênesis. Tal qual descrito no Gênesis, o mundo sumério é formado a partir do abismo das águas, e os céus e a terra são separados um do outro por uma estrutura sólida.

B.- Em A Árvore de Hulupu, temos uma predecessora da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Esta árvore especial é encontrada por Inana, que a leva e planta em seu jardim para seu povo. Mas logo se alojam nas raízes da Árvore de Hulupu um pássaro traiçoeiro e a deusa Lillith, a primeira esposa de Adão, a deusa independente e toda-em-uma, que na minha opinião representa o selvagem e inconquistável Poder do Feminino, tão temido por alguns.

C- Existem claros paralelos bíblicos na história do Dilúvio, que antecede os judeus em cerca de 1000 anos. . Na versão suméria, o piedoso Ziusuda é informado por Enki (sob artifício) que os deuses querem destruir a humanidade. Mas Enki/Ea instrui Ziusudra para que construa uma arca, e salvar a si e aos que ama. Pássaros também são mandados para procurar terra firme quando param as chuvas, etc.

D.- A Corte de Inana e Dumuzi e O Cântico dos Cãnticos -O Cântico dos Cânticos de Salomão para a Rainha de Sabá é, sem dúvida, a passagem mais romântica do Bíblia, um texto único, místico e sensual, totalmente diferente de todos os outros textos do Velho Testamento.

Entretanto, se olharmos para a Mesopotâmia, poderemos traçar a origem d"O Cântico dos Cânticos". Existem numerosos exemplos de textos mesopotâmicos cujo conteúdo é normalmente chamado pelos estudiosos de canções de amor ou poesia real cortês. Neles, em geral é a mulher que se aproxima do homem, para dizer-lhe que deseja que ele lhe dê prazer, e que confia na habilidade deste para ser seu amante e amado, e as personagens destes poemas serem divinas ou quase divinas. Estes textos pertencem à tradição suméria, uma vez que os grandes textos sumérios da tradição de Uruk foram retomados durante a Terceira Dinastia de Ur, para dar origem a um estilo literário cheio de palavras de sedução e conteúdo erótico-amoroso, amplamente centrado na relação amorosa do rei e alto sacerdote com a grande deusa do Amor e da Guerra, Inana/Ishtar, muitas vezes representada pela alta sacerdotisa e princesa/rainha como a representante viva de Inana/Ishtar na terra e consorte/esposa do rei. Os dois representam, respectivamente, a deusa que traz fertilidade ä terra, e o rei-sacerdote, ou o pastor sagrado e guardião da terra e do povo. A mais querida canção de amor da Antiga Mesopotâmica chama-se "A Corte de Inana e Dumuzi", onde o pastor-rei e sumo-sacerdote faz a corte à sua amada, escolhida e rainha, Inana, a grande deusa do Amor e da Guerra. "A Corte de Inana e Dumuzi" mostra também como era realizado o Rito do Casamento Sagrado, onde a cada ano, no início da primavera, no altar mais sagrado, o zigurate, o rei, o divino representante dos homens, e a alta sacerdotisa de Inana se encontravam para se amar, e fazer a terra florescer em todos os sentidos. E neste momento, eu gostaria de render as minhas homenagens aos escribas judeus, que retomaram este grande mito mesopotâmico, mas fizeram-no seu com o encontro de Salomão pela sábia, apaixonada, corajosa e toda-em-uma Rainha de Sabá. Sem dúvida, ela mesma uma valerosa vestimenta mortal de Inana, vinda da Etiópia.

Outra evidência histórica é que Ur, o grande centro literário da Mesopotâmia há cerca de 4.500 anos atrás, é a terra do grande patriarca judeu Abraão, que de lá saiu para fundar Israel. Portanto, os escribas judeus devem Ter tido conhecimento deste estilo literário tão difundido Por outro lado, Salomão, sendo também um sábio (semelhante a Adapa?) deve Ter conhecido as canções de amor mesopotâmicas. Um tributo aos escribas judeus e a Salomão pela maravilhosa canção de amor que escreveram, sem dúvida uma das mais lindas da história da humanidade. Que bom que eles aprenderam tão bem o lado mais apaixonado dos mesopotâmicos!

E.- A unção de Jesus Cristo pela Mulher com Vaso de Alabastro e a Sagração de Sacerdotes-Reis

O direito ao trono, que era um dom sancionado pelos deuses e deusas, e o rito de consagração de Dumuzi, o rei-pastor, por Inana, a deusa é descrito em pormenores na "Corte de Inana e Dumuzi". A unção de futuros reis que se sacrificavam pela comunidade pela Alta Sacerdotisa e Princesa Real ou Rainha fazia parte da tradição do Oriente Próximo, e como tal, devia ser do conhecimento dos primeiros cristãos. Provavelmente por este motivo é que os evangelistas Lucas, Mateus e João mencionaram a unção de Jesus pela dama do jarro de alabastro em seus evangelhos do Novo Testamento da Bíblia. Em Mateus (26:12-13), é com as seguintes palavras que Cristo reconhece o ato de ter sido ungido com o caro óleo da misteriosa dama do vaso de alabastro:

"Por isso, derramando ela este bálsamo sobre o meu corpo, fê-lo como para me sepultar. Em verdade vos digo que em toda parte onde for pregado este Evangelho para todo o mundo, publicar-se-á também para sua memória o que ela fez." (Bíblia Sagrada, traduzida pelo Pe. Matos Soares, Ed. Paulinas, 1964).

Uma leitura aprofundada mostra-nos que tanto Jesus como aquela que o ungiu estavam conscientes do ritual de sagração de reis sagrados, o pastor real que pode ser levado ao sacrifício para o bem da terra e do povo, e é esta honra e responsabilidade que Jesus aceita, honrando também àquela que lhe confere tal distinção.

F- O relato mais antigo sobre o dilúvio é bem mais anterior do que o do Velho Testamento da Bíblia, e encontra-se no Épico de Gilgamesh (ver encontro de Gilgamesh com Utnapishtim em Sumério, que é Ziusudra em Babilônio e Assírio) e no mito de Athrasis (a ser incluido neste site)

Para terminar (existem muitos outros paralelos, mas desta vez vou ficando por aqui) temos Ezekiel 8:14, onde o profeta vê mulheres de Israel chorando por Tamuz (Dumuzi) durante uma seca.