segunda-feira, 20 de junho de 2011

justiça no Antigo

O conceito de justiça no Antigo Testamento a partir de Juízes 5.9-12

Resumo

O conceito de sedaqah, em Juízes 5.11, representa certamente o significado mais primitivo usado e confessado pelo povo israelita. Longe de carregar um sentido simplesmente jurídico ou de uma ordem cósmica, a expressão sidekot Yhwh, traduzida por justiças de Javé, deve ser entendida como os atos salvíficos de Javé. Esta interpretação é reforçada pelo verbo hebraico tanah, recontar que rege a frase lá se recontam os atos de justiça de Javé. O esforço de recontar os atos salvíficos de Javé, no passado, tinha o objetivo de resgatar a fé no Deus que age em favor dos necessitados e trazer alento para o povo diante do desafio de conquistar um espaço para morar, plantar e criar filhos e filhas com dignidade.

Palavras-chave

Cântico de Débora - voluntários - tribalismo justiça - atos salvíficos

Tércio Machado Siqueira é pastor Metodista, doutor em Ciências da Religião e professor de Antigo Testamento da FATEO/UMESP.


O Cântico de Débora (Jz 5.1–31) não é somente importante por contribuir com o argumento da antiguidade da perícope do Sinai (Ex 19.1;Nm 10.10), mas também por revelar, provavelmente, o mais original conceito de sedaqah, justiça, no Antigo Testamento (Jz 5.11).

1. O texto de Juízes 5.9-12

Esta sub-unidade literária do Cântico de Débora mostra a sua importância pela consistência teológica de suas palavras. O autor dessa composição mostra seu coerente pensar teológico: a história do povo é o lugar apropriado para fazer teologia. Nesse texto, o que é mais importante são os atos salvíficos de Javé, e não a liderança que comanda e participa dessa batalha tão importante para o povo de Israel.

(A) – A tradução

Esta é uma tradução provisória de Juízes 5.9-12. Nesta, foi tentado captar o sentido mais original possível das palavras e expressões hebraicas. Da mesma forma, tentou-se resgatar a forma poética desse poema, procurando dispor as frases do texto com os seus paralelismos, a fim de facilitar o seu entendimento e interpretação.

  1. Meu coração mantém-se em ordem (inclina-se) para os comandantes de Israel,os que se apresentam voluntariamente. Bendigam a Javé!
  2. Os que cavalgam jumentas vermelho-amareladas, os que sentam sobre vestes, e os que andam sobre o caminho. Prestem atenção!
  3. Na voz dos que distribuem água entre os bebedouros! Lá se recontam os atos de justiça de Javé, os atos de justiça dos seus camponeses em Israel!Então o povo de Javé desceu (desceram) para os portões.
  4. Desperta, desperta, Débora! Desperta, desperta, fala um canto! Levanta, Baraque, e leva cativo teu cativo, filho de Abinoão!

(B) – A estrutura e a dinâmica literária de Juízes 5.9–12

Este cântico apresenta-se com uma roupagem litúrgica bastante evidente. A subunidade, Jz 5.9–12, é parte dessa ampla liturgia (v. 1–31) e mostra a convocação final das tribos, bem como a relação dos combatentes, para a batalha contra os cananeus na Planície de Meguido. Eis uma tentativa de entender e interpretar a dinâmica deste pequeno parágrafo pertencente ao Cântico de Débora:

I – Convocação/relação dos combatentes de Israel: 9–11

  1. Declaração: Meu coração inclina-se para...
  2. Relação dos voluntários combatentes: 9b–11a.

1. guerreiros na batalha: 9b–10 – Os que...

2. retaguarda da batalha: Os que distribuem água entre os bebedouros: 11

[a] Distribuem suprimentos: água – 11a.

[b] Celebram os atos de justiça: 11b

  1. A primeira movimentação da tropa: Então o povo... desceu para os portões: 11c

II – Apelos antes da batalha: 12

  1. À Débora: 12a.
  1. Despertar para a luta
  2. Cantar
  1. A Baraque: 12b
  1. Levantar
  2. Prender os inimigos
  3. Menção da identidade de Baraque.

Inicialmente, é preciso ressaltar que os versos 9–12, juntamente com os versos 2–5, mostram uma dinâmica literária e teológica que a destaca do resto da perícope (v. 1-31). Como exemplo disso, a primeira parte dessa sub-unidade (v. 9–11) relaciona os combatentes que se ofereceram para a batalha contra o príncipe cananeu de nome Sísera, conforme Juízes 4.1–24. É o momento decisivo da luta, pois, após essa chamada final, o povo ouvirá os distribuidores de água e, a seguir, descerá das montanhas, onde moram, para combater, nos portões, as treinadas e equipadas milícias das cidades-estado de Canaã. Os versos 9–10 relacionam os voluntários combatentes israelitas, sem fazer comentários sobre suas funções específicas. Porém, o verso 11 menciona a participação dos distribuidores de água, bem como as suas funções no conflito. A segunda e última parte dessa perícope contém um duplo apelo, dirigido a Débora e a Baraque, especificando as respectivas funções (v.12). Seriam eles os comandantes? Provavelmente, pois somente os nomes de Débora e Baraque são mencionados com funções específicas. Portanto, entre a convocação (v. 9–10) e o apelo final (v. 12) está a preparação básica para o combate. Essa preparação não consistirá de armas e técnicas de guerra, mas ouvir a narração dos atos salvíficos de Javé no passado (v. 11).

(C) – A data do Cântico de Débora

Este é um item que se reveste de grande importância, em vista de algumas informações contidas no texto. Naturalmente que recorreremos ao Cântico como um todo, já que os versos 9–2 são parte dele. Dois pontos importantes devem ser levados em consideração nesta análise: primeiramente, Juízes 5.1–31 tem sido avaliado, pelos principais pesquisadores e pesquisadoras, como o mais primitivo texto do Antigo Testamento, por seu rico elenco de termos e expressões arcaicas (J. Alberto Soggin, Judges, London: SCM Press LTD, 1981, p.79-101); em segundo lugar, a linguagem, os costumes e as referências históricas remetem esse texto para o século XII a.C.

Os versos 9–12 apontam para um tipo de combate que guarda as características da Guerra Santa. Os sinais desse tipo de combate estão claros no texto:

(a) o verso 9b fala de combatentes voluntários. Essa é uma das marcas da guerra santa, em Israel, empreendida no contexto do período tribal. A raiz hebraica ndb, apresentar-se voluntariamente, tem uma ocorrência considerada baixa na Bíblia Hebraica, porém muito significativa. O determinante no significado da raiz ndb é o elemento da “espontaneidade” (v. 2 e 9). Essa raiz aparece, especialmente, nos textos ligados ao culto (Lv 22.18; Nm 15.3; Ez 46.12). As experiências do êxodo e as dificuldades enfrentadas para o estabelecimento em Canaã desenvolveram, entre o povo, a idéia que Javé é o comandante das batalhas para conquistar um espaço na terra para morar, plantar e educar os filhos e filhas (Ex 15.3; 17.16; 1Sm 18.17; 25.28).

(b) Essa guerra possuía um forte caráter religioso, e, por isso, a batalha e os seus guerreiros eram purificados, antes da luta (1Sm 21.6; 2Sm 11.11) e a arma usada é a música, seja entoada pelas trombetas (Js 6.1-16) ou pelas canções de Débora (Jz 5.12). O verso 11 também menciona traços da fé israelita como meios de preparação para a batalha.

Na verdade, a batalha descrita em Juízes 5.1–31 guarda as características da guerra santa e, como tal, esse tipo de enfrentamento é próprio do período anterior aos reinados de Davi e Salomão. A partir de Davi, desenvolveu-se a idéia de que a organização tribal era uma forma ingênua de enfrentar os complexos desafios econômicos e políticos dos novos tempos. Especialmente com Salomão, foram montados exércitos profissionais com soldados mercenários. Por isso, novas bases militares surgiram para facilitar a defesa da terra e conquista de outros territórios (1Rs 9.15–19; 10.26 — conforme John Bright, História de Israel, São Paulo: Paulinas, 1981, p. 275–281; Herbert Donner, História de Israel, Volume 1, São Leopoldo/Petrópolis: Editora Sinodal/Editora Vozes, 1997, p. 227–264).

2. O Cântico de Débora e o projeto tribalista

O propósito político de Débora deve ser entendido à luz da fé javista e das grandes mudanças que ocorreram no contexto político-social do Antigo Oriente Médio, a partir do século XIII a.C.

(A) – O projeto tribal israelita e a história dos povos vizinhos

O tribalismo, entre os israelitas, está situado em um curto e importante período da história da humanidade. Por volta de 1250 anos antes de Jesus, o Antigo Oriente Médio passou por uma revolução tecnológica que marcou profundamente a vida social de seus habitantes. Trata-se do início da época do ferro.

No período do bronze, Canaã era uma região dividida por cidades-estado. Não havia um elo que as integrava. Com a descoberta da produção do ferro, novas possibilidades surgiram para os agricultores e os conquistadores de terras. Ao mesmo tempo, a descoberta do sistema de vedação de cisternas possibilitou a habitação nas montanhas. Além dessas duas novidades, é preciso destacar que as duas principais forças militares — Egito e Mesopotâmia — estavam enfraquecidas, sem possibilidades de uma ação na região dos cananeus. Isso facilitou, certamente, a invasão dos Povos do Mar que ajudaram a desestruturar as cidades-estado, sem, contudo, dominá-las e assumi-las. O caminho estava aberto para os israelitas estabelecerem-se na terra de Canaã. Trata-se de um milagre histórico que de uma forma poética é contado no Cântico de Débora.

Em meio a essas mudanças, os israelitas chegaram em Canaã com um novo projeto político. Assim, o tribalismo é um projeto histórico planejado e desenvolvido a partir de setores sociais oprimidos pelas cidades-estado e os israelitas moradores das montanhas (Norman K. Gottwald, Tribos de Iahweh, São Paulo: Paulinas, 1986). O Cântico de Débora deve ser visto e interpretado à luz desse contexto.

(B) – O projeto tribal israelita e a teologia

O Cântico de Débora apresenta-se como uma descrição bastante primitiva da prática teológica do povo bíblico. Portanto, seu valor se reveste de grande importância para a pesquisa da Bíblia. Eis algumas observações a partir do Cântico de Débora.

Os versos 9–12 estão envolvidos com a linguagem teológica. Não há como deixar de pensar que eles fazem parte de uma primitiva liturgia do culto, já que duas expressões sinalizam esse ambiente: bendigam a Javé (v. 9c) e prestem atenção (v.10d). Levando em consideração que esse texto é antigo, é possível concluir que ele nos fornece excelentes elementos para avaliar a prática teológica dos israelitas no período tribal. Para tanto, é preciso destacar que Juízes 5.9–12 conduz conceitos antigos, próprios da sociedade tribal israelita.

I – O projeto tribal e o voluntariado do povo

O verbo empregado no verso 9 é nadab, que conduz o sentido de oferecer-se livremente, apresentar-se voluntariamente para exercer uma função ou defender uma causa. O elemento da voluntariedade é sempre determinante no emprego desse verbo. Tanto o verbo nadab como o substantivo nedabah, voluntariedade, dádiva espontânea, refere-se primariamente ao âmbito do culto (Ex 25.2; 35.21,39). Esses termos são usados para se referirem às ofertas para o sacrifício (Lv 22.18), contribuições para o Templo (Ed 1.6), favor divino (Sl 68.10) e, por fim, expressar a livre decisão ou escolha para agir em uma determinada missão (Jz 5.2,9; Ed 7.13; Ne 11.2). O detalhe determinante, no uso de nadab e nedabah, é que a decisão ou a escolha voluntária está em função do favor de Deus. No caso específico do Cântico de Débora, a decisão voluntária dos camponeses israelitas correspondia a uma resposta ao ato salvífico de Deus, libertando-os da escravidão, sustentando-os quarenta anos no deserto e dando-lhes uma terra para morar em paz. A ocorrência de elementos literários litúrgicos, em Juízes 5.9–12, reforça a idéia de que a intenção do Cântico de Débora é uma liturgia que está associada à Guerra Santa.

II – O projeto tribal e o conceito de sedaqah, justiça

O Cântico de Débora não menciona armas disponíveis aos combatentes israelitas, mas fala de voluntários para enfrentar os exércitos dos reis das cidades-estado. Certamente, entre os israelitas o medo estava presente, mas, apesar disso, havia disponibilidade entre as pessoas ocupadas: os que montam jumentas, os que sentam nos tribunais, os que andam a pé e os distribuidores de água (v. 9–11).

Há um detalhe muito interessante nos versos 9–11. Com exceção dos distribuidores de água, o texto não faz menção da função dos outros grupos de combatentes voluntários. Qual seria o motivo dessa extensa referência da participação dos distribuidores de água? Eis uma questão interessante a ser analisada.

(a) A importância da ação dos distribuidores de água, nesse combate, é grande, pois somente após a participação deles é que os combatentes desciam das montanhas para irem em direção aos portões das cidades-estado. Em outras palavras, o início do combate aos reis opressores dependia da participação desse grupo que atuava junto aos bebedouros.

(b) O verso 11 menciona dois verbos para referir-se à ação dos distribuidores de água: hasas, distribuir e tanah, recontar, narrar de novo. Aparentemente, as ações desses verbos são divergentes; porém, eles se completam por meio da voz dos distribuidores de água. Enquanto eles repartiam água, junto aos bebedouros, eles celebravam, com os demais voluntários, isto é, os que montam jumentas, os que sentam nos tribunais e os que andam a pé.

(c) A função dos distribuidores de água não é, simplesmente, matar a sede dos combatentes israelitas. Segundo Juízes 5.11, os voluntários israelitas, antes de descer para os portões, deveriam escutar a voz dos distribuidores de água. O texto não faz menção acerca da maneira como eles distribuíam água, mas especifica que eles recontavam as histórias da atuação de Javé no passado (Carlos A. Dreher, “A formação social do Israel pré-estatal. Uma tentativa de reconstrução histórica, a partir do Cântico de Débora (Jz 5)”, Em: Estudos Teológicos, 2, 1986, p. 169–201).

(d) A função dos distribuidores de água é descrita pelo verbo tanah, que aqui deve ser traduzido por recontar, contar de novo (v. 11) ou cantar (Ex 32.18; Jz 11.40; Sl 8.2) os sidaqot, justiça de Javé. Na descrição da atuação dos israelitas que distribuíam água para os combatentes, o que chama atenção é a afirmação de que eles recontavam as sideqot, justiças, de Javé para os combatentes. Isso sugere que no plano de combate dos camponeses israelitas incluía uma celebração cúltica visando rememorar os atos de justiça empreendidos por Javé no passado.

(e) Diante disso, surge uma questão que tem sido discutida, entre os estudiosos e as estudiosas, acerca da palavra hebraica sedaqah, no Antigo Testamento.

3. O conceito de sedaqah, “justiça”, no Cântico de Débora

Sem discutir o mérito da questão, é importante mencionar que há duas correntes que interpretam o sentido de sedaqah: a primeira é liderada por H.H. Schmid que associa a definição desse termo com as concepções do Antigo Oriente Médio, segundo a qual, sedaqah está relacionado com a ordem do mundo tal como foi criada (conforme Klaus Koch, “sdq ser fiel a la comunidad”, Em: Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, Volume II, E. Jenni e C. Westermann, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1985, p.639-668). A segunda corrente interpreta sedaqah como uma palavra que aponta para o sentido de ações salvíficas de Javé.

O capítulo 5 do livro de Juízes carrega as marcas de um texto escrito no século XII a.C. Esse é um tipo de hino que se assemelha ao cântico de vitória de Moisés e os filhos de Israel (Ex 15.1–18). Tanto o cântico de Moisés como o de Débora cristalizaram-se num poema, tornando-se hinos celebrativos que se perpetuaram na memória dos crentes e de suas liturgias. Ambos cânticos exaltam a atuação de Javé em favor do povo hebreu. Muito mais significativo que a data são as informações históricas e teológicas que esses textos conduzem e propagam, incentivando os crentes, através das gerações, a exercerem a fé no Deus que ouve o clamor, vê a angústia dos que sofrem opressão e os liberta. Esses dois cânticos não tencionam contar e exaltar a prosperidade e a superioridade de Israel e o poder de seu Deus em fazê-lo sempre vitorioso, através da eliminação de seus concorrentes pela posse da terra. Há um motivo muito maior que estimula o povo bíblico a lutar: o direito de cada povo ter uma terra para criar e educar os seus filhos com dignidade.

O Cântico de Débora exerce uma função importante no cenário teológico de toda Bíblia. Ele mostra que, particularmente, o Antigo Testamento não contém um esboço de doutrina, mas ele é uma narrativa, uma história de um povo, vivendo entre muitos povos. As confissões de fé, veiculadas pelos hinos, não são composições poéticas conceituais desvinculadas da realidade, mas têm relação direta com a história. Portanto, a teologia do Antigo Testamento nasce da história da experiência de vida do povo hebreu. Assim deve ser lido o Cântico de Débora: como uma confissão de fé, um testemunho ou um “querigma”.

Mesmo sendo descrito como um bando de escravos fugitivos que chegaram à terra de Canaã, Israel construiu a sua identidade teológica a partir de experiências históricas. Certamente foi muito grande a pressão cultural exercida pelos egípcios, povos da Mesopotâmia e os cananeus.

O conceito de sedaqah, justiça, que o Cântico de Débora revela, não pode ser desvinculado da história salvífica, narrada nas páginas de toda a Bíblia.

Na voz dos que distribuem água entre os bebedouros!

Lá se recontam os atos de justiça de Javé,

os atos de justiça dos seus

camponeses em Israel!

Então o povo de Javé desceu (desceram) para os portões (v. 11).

O verso 11 possui uma formulação extraordinariamente significativa para o estudo de sedaqah, justiça, particularmente, no Antigo Testamento. Ao contrário do que se espera ouvir falar dos promotores da justiça, nesse hino são os distribuidores de água que têm a tarefa de exercê-la entre os camponeses combatentes. Nessa descrição, fica claro que a missão dos carregadores de água não é “fazer justiça” nos portões ou nos tribunais. O verso 11a declara que, próximos aos bebedouros, eles recontam os atos de justiças de Javé.

Nos versos 9–12, dois detalhes chamam atenção. Primeiro, o sujeito das sidekot, atos de justiça é Yahweh. Essa expressão, no verso 11, não pertence ao âmbito jurídico, mas ela se refere à intervenção libertadora de Javé, no passado. Por que tal conclusão? O emprego do substantivo sedeq, justiça, no plural, ocorre mais três vezes no Antigo Testamento. No Salmo 103.6, o compositor mostra que Javé realiza sideqot para o seu povo, particularmente aos oprimidos. Também o historiador, em 1 Samuel 12.7, menciona que a memória das ações justas de Javé, em favor do povo, deve ser lembrada e recontada nas celebrações cúlticas do povo. O profeta Miquéias, em sua crítica à formalidade do culto, apela ao povo de Judá para que reconheça as sideqot, ações salvíficas, de Javé no passado. Essa ação é para o bem do povo (Dt 6.25; 24.13) e, na ausência da sedaqah, todo Israel lamentava (Is 59.9,14). Esses textos revelam que o povo bíblico, especialmente nos primeiros momentos da chegada a Canaã, buscava forças para enfrentar suas complexas lutas de adaptação em Canaã. De uma certa forma, a celebração da Páscoa tinha o mesmo propósito (conforme Ex 12.21–28).

Em segundo lugar, fica claro que os voluntários que se movimentam para a batalha — os que montam, os que sentam, os que andam pelos caminhos — são convidados a fazer um “breve curso preparatório”, isto é, ouvir a voz dos distribuidores de água, junto aos bebedouros, recontando as justiças de Javé, isto é, as Suas intervenções libertadoras em favor do povo. O detalhe significativo, nessa tarefa de recontar a história, é a ausência do pessoal do culto de Jerusalém. Essa memória é trazida por trabalhadores, isto é, distribuidores de água junto aos poços. Apesar de não ter vínculo com um espaço oficial de culto, o ato de fé ocupou um espaço fundamental e vital naquela batalha. Além disso, os versos 9–12 revelam que a fé não está na razão da guerra, mas na superação dela.

Valiosas informações a partir de Juízes 5.9–12:

(1) Esta sub-unidade do Cântico de Débora fornece preciosas informações sobre o modo de ser de uma batalha cuja data pode ser atribuída ao período anterior a 1100 a.C. Este texto contribui para a definição do que poderia ser uma guerra santa: não menciona a existência de soldados mercenários, mas a tropa era constituída de membros voluntários das tribos, como fica claro no uso do verbo hebraico nadab, apresentar-se voluntariamente (v.9b); na convocação geral para as tribos (v. 10); na estreita relação com a fé javista (v. 11); com a forma ingênua de atuar na batalha: cantando e levando os cativos sem mencionar o uso de armas de morte (v. 12). São informações que contribuem para a caracterização do conceito de guerra santa.

(2) O conceito tribal está muito presente neste texto bíblico. A ausência do campo semântico de melek, rei, sinaliza que o Cântico de Débora tem sua origem no período anterior à monarquia. O voluntariado para colaborar com as tribos, na ação de defesa de seus princípios básicos, é justificado como uma resposta ao ato salvífico de Deus, libertando-os da escravidão e dando-lhes uma terra para morar, plantar e educar os filhos e filhas.

(3) O conceito de sedaqah de Javé, em Juízes 5.11, precisa ser analisado à luz do contexto do Cântico de Débora. Esse texto usa o plural construto sidekot Yhwh. Entretanto, não se pode traduzir esta expressão pura e simplesmente como “justiças de Javé”, pois tal forma comunica a idéia de estabilidade e durabilidade como as montanhas (Sl 36.7). O verso 11 de Juízes 5, todavia, refere-se às intervenções e ações de Javé na história do povo. Para se chegar a essa compreensão, é preciso observar que o verbo da frase é tanah, recontar, através de canções, as sidekot Yhwh. Por outro lado, é importante observar que, em todo o Antigo Testamento, não há lugar para se desenvolver a racionalidade científica da fé. A verdade é que na preparação para uma batalha, de importância vital para a sobrevivência do povo, para os combatentes não bastava passar conceitos e doutrinas a respeito do caráter de Deus. Acima de tudo, era preciso recontar as sidekot Yhwh, isto é, os atos libertadores de Javé que possibilitaram a libertação dos escravos hebreus. Futuramente, alguns textos bíblicos registraram a lamentação dos crentes pela ausência dessa memória que trazia alento e fortalecia a fé (Is 59.9,14).

(4) Portanto, o ato de recontar as ações salvíficas de Javé, por parte dos distribuidores de água, antes da batalha contra os cananeus, foi visto pelo autor do Cântico de Débora como um sacramento. A intenção de “recontar” os “atos salvíficos” de Javé é alentar, fortalecer na fé os temerosos combatentes. Afinal, eles iriam enfrentar exércitos adestrados e abastecidos de armas! Assim, não é difícil concluir que a fé está no ponto de partida de todos os embates da vida. Com a mesma intenção, a Igreja Cristã manteve a celebração da Páscoa, na qual a memória dos atos salvadores de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo deve ocupar um espaço vital.

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